EXCERTOS
A ILUSÃO DAS MASSAS
Pourquoi y a-t-il quelque chose au lieu de rien? A pergunta foi grafada em francês por ser feita em proporções maiores do que nos idiomas restantes, sendo conhecida universalmente por todos na língua francesa. Ora que bem, tem-se no núcleo da questão a resposta para algo que ecoa desde os tempos em que, comprovada e simultaneamente, os ovos surgiram antes das galinhas. Nada nasce pronto. Todavia, o entrave, partindo da nossa compreensão ególatra, é a identificação com um dos dois grupos cognitivos ao qual pertencemos: os que querem crer e os que querem saber. Contudo, já que existe algo, os valores vêm tomar lugar ao nosso lado na longa jornada de entendimento deturpado em que nos arrastamos, como resultado da sujeição imposta ao povo pela classe sacerdotal.
Como eu, na segunda metade da existência, consegui pular do primeiro para o segundo grupo social, ou mesmo que não seja social o termo certo, que sejam distintas massas humanas, livrei-me da condenação à permanência eterna na idade mental de uma criança. Por ser a crença em fábulas religiosas uma das razões do egoísmo humano, os valores teriam, obrigatoriamente, sua origem nos propósitos construídos por alguma divindade inquestionável, para que possamos temê-la, amá-la e obedecê-la, com seus valores bem assentados. Sim, egoísmo, pois “umas tais escrituras”, segundo Nietzsche, vêm a ser algo como um salve-se quem puder. Porém, ainda que tenhamos por natureza uma profunda necessidade de crença, mas portadores de um cérebro como uma máquina de superstições, ainda assim, podemos pular o muro da libertação. Porque, de fato, qualquer divindade é questionável e o bonito da história é que sabemos disso, mas precisamos da hipocrisia para sobreviver e cimentar a História com a nossa contribuição no palco.
Diga-se de passagem, por nos recusarmos a ver o realismo da existência, optamos por realidades paralelas e mesmo alternativas bem pessoais. Nem tanto no foco da nossa estupidez, nem tanto holística, já que somos fadados a ver as partes e não o todo, entretanto, é algo que não conseguimos vencer com facilidade. Basta voltarmos o olhar para a customização divina que empregamos na nossa vida reservada, onde, para uns, Deus é assim, para outros é assado. Mas para mim Deus é como eu o entendo, diz o fulano da flauta. E cada um customize seu Deus como bem entender, porque é assim mesmo que se lida com fantasmas. O cinismo da nossa espécie se mostra cada vez mais. Enquanto nosso ego nos defender de tudo à nossa volta, a ideia de Deus precisará ser mantida, custe o que custar e, na medida em que a divindade for preservada como persona, menos será percebida como ela é realmente – apenas uma ideia.
De novo Nietzsche, que profere e registra a morte de Deus no século dezenove, mas nos adverte da necessidade de suplantar a ideia do Deus innatus, pois sem isto é impossível perceber a realidade. E tudo vem da grande manobra das religiões: a sacralização. Acontece que o sagrado é uma invenção humana, onde está implícito o medo, a covardia e a culpa. Por isso, surge no Iluminismo a tese da dupla verdade, “cada macaco no seu galho”, onde o ceticismo dos aufklärer² não interfere nas crendices dos ignorantes, embora, sustentada pela hipocrisia em que vivemos. Todavia, a recíproca é real, os ignorantes também são alijados com rigor do convívio social dos eruditos. Hoje, mais do que nunca, valemo-nos da conveniente assertiva: nós não cremos em deuses ou teologias, mas, pelo Estado e o controle social, é necessário que o populacho se mantenha crédulo – precisamos disso. Sabemos que Deus está morto, mas nem tivemos a decência de acompanhar o seu enterro. Cometemos o deicídio e deixamos a divindade insepulta, justamente por admitirmos várias moldagens e customizações de uma entidade que nem temos ideia do que seja, mas repetimos “vai com Deus, fica com Deus”. Cometemos toda sorte de mentiras sinceras do nosso interesse, entretanto, com o alívio de que prestamos um contributo à vileza consensual bem dosada. O secularismo social de fato apagou Deus do contexto, mas considera fundamental que o cenário não seja desmontado em benefício dos interesses desse multissecularismo irremovível. O que é isto senão um contrato social fideísta-desmitologizado?
Sacralização, o grande marketing que deu certo. Assim, cada Deus capricha na sua manufatura, um livro aqui para criar uma religião, outro lá, para equilibrar as diferenças e agradar a todos. Aqui no Ocidente, é o bastante falar só da Bíblia, isto já inclui judeus e cristãos. Daí, então, faz-se necessária a distribuição de livros para o povo, afinal, como assentar os dogmas e doutrinas com a palavra e recomendações indiscutíveis que vêm lá de cima? No boca a boca a coisa se perde, pois só os tais escritos ficam, mas desde que se tornem sagrados. Na Antiguidade, começaram a confeccionar os escritos que, mais tarde, seriam encadernados e impressos para atender ao povo de Deus. Mas curioso e estranho é que não se tenha, em nenhum museu do mundo, fundação ou biblioteca, um original sequer de tudo o que foi escrito na Bíblia... Porém, de nada adianta debater com os cegos de coerência, porque é impossível convencer pela razão àqueles que insistem em crer em contos através das emoções.
Se algo é sagrado, está posto. Não é para ser questionado. Mas por quê? Enfim, vivemos no século vinte e um, o mundo mudou e os perceptos religiosos não podem sobreviver à onda de informações que nos chegam a cada minuto. O maior desespero de qualquer crente hoje é o desmoronamento das fés e do descredenciamento dos Livros de todas as religiões, que se mostram ainda contumazes, apesar da morte de Deus, admitida há mais de duzentos anos. Os crédulos sustentam afirmações em defesa da fé que já se tornaram pueris para o nosso tempo. Discursos deslocados em favor de divindades ausentes. Cada vez mais turrões, os crentes nos significados se refugiam, mais e mais, no fundo da caixa que escolheram, reagindo em nome da promessa de moradas eternas.
Hoje, conceitos mudam rapidamente. Na Antiguidade, mais lentamente, ainda assim, em constante evolução. Basta que se reflita, por exemplo, sobre a questão da alma. Na verdade, o conceito de alma se desenvolveu no Egito, Índia, Mesopotâmia e no mundo grego, mas sempre com formas diferentes de interpretação. A alma nunca foi matéria unívoca na sua forma de entendimento, pois a maior prova disso está na base do raciocínio de que a alma é, tão somente, uma invenção da linguagem. Com as devidas equivalências, no hebraico néfesh; no sânscrito atman; no grego psykhé, pneuma; em latim anima. No pensamento grego, já encontramos em Sócrates, Aristóteles e, sobretudo, Platão, o desenho básico para a questão da alma. Mais tarde, a Igreja Católica, apropria-se do que foi mastigado pelos gregos, para aplicar o maior engodo teológico de todos os tempos. A invenção consensual da alma, criada e reforçada através dos vinte e um concílios da Igreja, foi o caminho aceito pela massa míope com a finalidade única de criar uma sensação de eternidade abraçada pelos bilhões de pobres através da teocracia. A articulação da Igreja, ao impedir que a verdade prevaleça, substituído-a pela ilusão, ao abarrotar os cofres eclesiásticos nos oculta a única coisa que temos: a vida aqui, hoje. Isto sonega a verdadeira finalidade da nossa vida, que é deixar de existir.
Enfim, todas as fábulas da religião pressupõem um significado. Quanto mais significados, melhor. Mais lucro para o clero, sendo a alma a fundação de toda a falácia. Ora, o significado da vida é a própria vida. Não há significados como a fé impõe. O que é significante para um não é o mesmo para outro, portanto, os significados existem apenas para cada um, pois se trata de algo absolutamente individual. A família, o trabalho, as aventuras na vida, os estudos, os ideais e o que mais se quiser priorizar para atravessar a existência assombrosa. Somos formatados pela evolução para inventar significados. Com essa tese, Deus passa a ser um completo absurdo. Então, a situação que assistimos é um festival completo de pseudorreligiões mantido pela nossa falta de reflexão com uma pitada de cinismo. Deus começou sua carreira como um ser antropomórfico e depois foi diluído aos poucos para criar suas adaptações.
Depois do que Nietzsche andou declarando, dizem que Deus ainda respira na UTI, mas se mantém vivo somente pela antiga questão dos valores morais, consensualmente admitidos como que advindos dele mesmo e de maneira incontestável. Diante desta ficção pia, cabe minha ferrenha contestação: jamais a origem da Moral, oriunda da divindade, poderia ter fundamento científico algum. Se a Moral fosse oriunda de Deus realmente, não existiria esse brutal relativismo de fundamentos morais no planeta – haveria um só princípio moral universal. Engraçado é que cada povo tem seu próprio conjunto de normas morais derivado, é lógico, dos seus próprios livros sagrados... Tal atoarda estúpida não passa de escravidão da mente após séculos de doutrinação religiosa. Mas, para os que se preocupam em sair do estado mental de letargia do passado, é necessário compreender o mundo em que vivemos. Ora, os valores morais estão, logicamente, ligados aos estados cerebrais e mentais do indivíduo. Nessa ordem exata, sofrendo influências sociais, geográficas, biológicas e físicas. Mas esses valores não guardam relação com a ciência, porque é na ciência que encontramos respostas para tudo e não nas afirmativas tresloucadas de qualquer pressuposto metafísico. Se existem propostas para que religião e ciência ocupem diferentes áreas do conhecimento, portanto, passíveis de ser niveladas como epistemologia, ou como algo dentro da mesma estatura, é impossível que tais propostas sejam levadas a sério. Religião não é conhecimento. Não é ciência. É adivinhação, palpite, presunção e má fé com o objetivo de sujeitar a mente das pessoas fracas ou sonsas através dos recursos emocionais. A religião foi criada para os que precisam dela. Ressalte-se que a religião começa onde a ciência ainda não resolveu uma determinada questão no tempo da abordagem correta. Isto significa, tacitamente, que discursos enganadores da religião não podem ser levados a sério no universo científico. Às vezes desconfio que essa alienação tenha origem na nossa acomodação intelectual.
Se a ciência aponta o relativismo como um non sequitur⃰, então, todo relativismo deveria ser repensado. Os fatos científicos não podem se distanciar dos valores. Mas os valores não representam comportamento, ética e conduta que visam à benevolência? Entretanto, é óbvio que qualquer cientista sabe da incompatibilidade entre religião e ciência, mas alguns fingem que isto não existe, pois são vítimas dos conflitos de interesses que ocultam nos bolsos. E esses tais são atores antes de serem cientistas. Sabemos no fundo que os adultos religiosos se devoram mundo afora na disputa para ver quem tem o melhor amigo imaginário, enquanto os egoístas vão à igreja porque se sentem bem.
Cheguei à honesta conclusão de que fatos precisam estar juntos de valores, então, deduzo com clareza que só através da experiência direta, a empeiria dos gregos, fica possível a compreensão dos sentimentos. As consequências no mundo sem perquirição de nada valem. Para que valores sejam dimensionados, é necessário experimentar a alegria, o medo, tristeza, a dor, a traição, a raiva, o amor, etc., para que possamos inferir nas criaturas os resultados de tudo isso. Melhor dizendo, é através da análise das consequências e dos estados conscientes que se estabelece a fundação de todos os valores. Aliás, por que não mencionarmos a base de tudo isto, advinda de filósofos utilitaristas como John Stuart Mill e Jeremy Bentham, que nos mostraram o próprio caminho do consequencialismo? A ética da virtude produz as melhores consequências e visa o bem estar de todos. Para isto, é preciso entender que um agente seja responsável tanto pelas consequências intencionais de uma ação, como pelas não intencionais quando previstas e não evitadas. Logo, as consequências têm que ser levadas em conta quando se estabelecem juízos sobre o certo e o errado.
Há tempos, não entendo porque devo associar valores a Deus, até porque, muitos desses valores não se harmonizam às coisas boas que meus pais me ensinaram e, por certo, fizeram-me feliz, não tendo relação direta com essa ou aquela divindade. E mesmo, são muitos os dogmas estabelecidos em diferentes credos, que colidem uns contra os outros de forma violenta, para serem justificáveis na construção da minha vida interior. Diga-se de passagem, essas questões de divindades é algo que interessa somente a cada um de nós. A menos que, para os que querem erguer os olhos com coragem, surjam os necessários argumentos por amor ao debate, mas são poucos os que não fogem dele. As violentas e inelutáveis mudanças sociais fizeram de Deus uma massinha de modelar, vítima da customização, adaptando-o aqui e ali aos caprichos humanos. Desta feita, o postulado Vox populi, Vox Dei, torna-se realidade sob o ponto de vista populista. Ora, só os mitos não morrem, pois são amamentados pelo clero para a sedução das massas ajustadas. Como Deus não pode ser separado do dogma, ou abstraído da própria teologia, faz-se a prova inconteste do seu destino na fábula. A tão esperada finalidade pelo entusiasmo dos crédulos é pulverizada pelo próprio dogma, que colocou o todo poderoso numa máquina de moer, não sobrando nada consistente nos livros santos sobre ele. Digo mais, pelo fato de tantas construções dogmáticas e aventureiras, produzimos o deus do absurdo. Isto porque, nesse processo pluripartido, o deus não pode ser abstraído nem descartado, como pensara Nietzsche, já que descobrimos se tratar de um produto destinado a todos os níveis de compreensão, em que pese a finalidade restante. Ao que nos parece, enquanto houver um mendigo no mundo, essa construção deplorável continuará existindo nas mentes desniveladas, por isso, a miséria das massas sobrevive. Infelizmente, perder tempo com tolos, é chutar cachorro morto.
Como guardo a absoluta certeza de que o homem mais importante do século dezenove foi Charles Robert Darwin, não pude ignorar suas palavras pertinentes ao tema abordado por mim: “Acreditando, como acredito, que o homem no futuro será de longe uma criatura muito mais perfeita do que é hoje, o pensamento de que ele e outros seres conscientes estão fadados a uma aniquilação completa depois de tal lento progresso contínuo é intolerável. Para aqueles que admitem inteiramente a imortalidade da alma humana, a destruição do nosso mundo não parecerá tão horrível”... E os ingênuos, que não veem a realidade, permanecerão tão felizes quanto as plantas.
Assim aclarada a sustentação, tem-se dito o resumo. Porém, se o presente texto não vier a cumprir o destino certo? Alguns, rangendo os dentes, ainda podem rotular meu texto de “uma ceia com o diabo”, mas buscarão textos correlatos quando se cansarem das baboseiras sacras e sairão em busca da realidade, nada esperançosa, mas inevitável. Pelo menos, compreenderão de vez o que significa o que é, e o que deveria ser. Simples assim: aos que têm um mínimo de coerência é sempre tempo para a reflexão diante do espelho: “Ora, ‘meu Deus’, por que não vi isso antes?”. Religião é teimosia de pensamento, que pretende mover as leis do universo para dar respostas às orações dos iludidos, mas que nunca abrangem os sentimentos do outro. Religião é manter convicção sem razão suficiente.
São Paulo, 18 de agosto de 2022
Ronaldo Antunes
© Todos os direitos reservados na forma da lei
1) Por que existe algo no lugar do nada?
2) Intelectual; preparado. “Não se segue que” – falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.
A voz do povo é a voz de Deus.
A RELIGIÃO DO LIVRO
UM CONCEITO DEMASIADO HUMANO
RONALDO ANTUNES
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A RELIGIÃO DO LIVRO
UM CONCEITO DEMASIADO HUMANO
Antunes, Ronaldo
Rio de Janeiro – Teresópolis – 2014
Assessoria editorial: Ângela Antunes
Capa; editoração eletrônica; revisão e arte-finalização:
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À amada Ula e aos dois filhos que ela me deu.
SUMÁRIO
CAPÍTULO I
Os desvios cognitivos
Por que cremos em algo?
Reaprendendo a pensar
CAPÍTULO II
Da invenção do monoteísmo
Da construção do livro e seus cânones fatais
Dos dogmas, contradições e fraudes
CAPÍTULO III
O cinismo crescente da indústria da fé
O desgaste da ideia de Deus
Um mundo de discrepâncias
Uma visão do futuro
PREFÁCIO
Jung insistia na ideia da impossibilidade de penetrarmos na essência dos fenômenos e que deveríamos renunciar às tentativas de fazer deles um problema intelectual. É certo que a referência trata dos fenômenos psíquicos, mas qualquer ramo da ciência não estaria intimamente associado à “ocorrência fenomênica”? Pois, como a Física prosseguiria? E a própria Psicanálise?
Superestimar a razão, Jung comparava, seria algo em comum com o poder do Estado absoluto: sob o seu domínio o indivíduo pereceria. Ora, aceitar com resignação e temor o incognoscível não é muito mais perigoso?
O entendimento de Jung sobre tudo o que o homem, na sua epopeia apreendeu e concluiu, é um fenômeno psíquico in totum. Assim, dentro dessa medida, permanecemos trancados, aflitos, num mundo unicamente psíquico. Certo é que resistimos ao que não conhecemos, pois vivemos encarcerados ao nosso mundo perceptivo. Tudo representa ameaça quando colocamos os pés fora do restrito espaço da nossa percepção e reagimos ao intruso que apresente fundamentos mais fortes que os nossos.
Se rejeitarmos a ideia de fazer de um fenômeno um problema intelectual, voltamos ao passado distante; restabelecemos os mitos e as fábulas como norte da civilização. Ao repisar, então: a religião começa quando a ciência termina? Puro sofisma: isso estabelece uma ciência estanque. Na verdade, a religião começa aonde a ciência ainda não chegou. Quando chega, a falsa certeza religiosa vai circum-navegar em outros mares – a história da civilização demonstrou há muito a superioridade do argumento científico.
Questionamentos se tornam moeda corrente até nos grandes mestres. Ao mesmo tempo em que Jung, oposto de Freud, mescla os fenômenos psíquicos, entremeados de opiniões transcendentais aos dados do purismo científico, também não pode fugir de verdades incontestes: “Quase todos concordam que a hipótese do homem ter sido criado em toda a sua glória no sexto dia da criação, sem degrau anterior, é muito simplista e arcaica para nos satisfazer. Entretanto, em relação à psique, as concepções arcaicas continuam em vigor: a psique não teria antecedentes arquetípicos; seria uma tabula rasa, uma criação inteiramente nova, que tem origem na ocasião do nascimento”.
Jung insiste na ideia de cultivarmos segredos e mantermos a intuição de algo incognoscível. Com a existência interior dividida, entretanto, muito devido ao caso amoroso com sua paciente, a futura psicanalista Sabina Spielrein, desabafou: “Permanecemos de mãos vazias, espantados, perplexos, e nem mesmo percebemos que nenhum mito nos ajuda, agora que temos tanta necessidade dele”. Em toda a sua obra, sentimos os altos e baixos de alguém que nunca se livrou dos envolvimentos com o além. Quase um século depois do dito de Jung, ouvi de Ivan Wasth Rodrigues[1] o aforismo: “Nenhum tipo de divindade nos socorre e a religião foi feita para quem precisa dela”...
Este livro é uma tentativa de mostrar ao leitor o resultado das crenças nas nossas vidas, ao focalizar a construção das Escrituras como veículo de perpetuação das crendices canonizadas. Quero mostrar como as crenças são construídas pelo cérebro e amparadas pelos desvios cognitivos dos quais somos reféns com frequência absurda. Indico como reaprender a pensar e, também, a analisar mergulhos equivocados nas crendices que nos rodeiam. Exponho a invenção do monoteísmo com propósitos teocráticos. Revelo como os livros sagrados foram construídos, sem escrúpulos, pelo judaísmo, cristianismo, islamismo e religiões orientais. Sobretudo a Bíblia, modelo maior de sustentação da “religião do Livro”.
Chegamos a um desgaste terrível da ideia de Deus e isso foi gerado pelo cinismo da indústria da fé, que se espalha apesar da evolução intelectual do homem. É o cinismo aceito e admitido pelos que não usam o poder da reflexão, que são conhecidos pelos termos infelizes de “massa de manobra e idiotas úteis”.
Quanto a mim, no passado, arrisquei a vida na esteira perigosa do sectarismo, o desfecho letal de todas as religiões, que primeiro atraem e depois escravizam. O perigo maior não é quando a presa está na boca do peixe, mas quando ela passa para o estômago, de onde não sai mais. Desperdicei boa parte da vida de maneira obstinada, na busca de soluções salvacionistas que me garantissem um lugar na eternidade e promovessem as respostas de que necessitava. Tal qual milhões de pessoas fazem, sem novidade.
A vaidade espreita os incautos e, em determinado estágio do novo caminho escolhido, fui cercado pela sensação de santidade. Isto porque, dentro dos parâmetros religiosos, eu teria passado do estado de ímpio ao de “separado para servir”... Bem, disseram-me isto. Achei-me feliz, até perceber, anos depois, que fora vítima de um pentecostalismo de péssima carpintaria teológica.
Sugou-me um sistema cruel, o tenebroso viés salvífico, que com palavras de esperança alega resgatar nossas almas, mas lambe os beiços com a matéria viva. Depois, cobra-nos a presença física para surrupiar o que houver nos bolsos e, o pior, escravizar as mentes fracas. Equivocados, morremos para o mundo e para nós mesmos.
Parado num congestionamento de trânsito, certo dia, avistei uma casa à beira da estrada, que tinha no vidro de uma das janelas um cartaz colado – chocante demais para a minha estrutura espiritual da época. Li o seguinte: “Quando uma pessoa sofre de um delírio, isto se chama insanidade. Quando muitas pessoas sofrem de um delírio, isto se chama religião”... Fiquei perturbado e analisei, por anos a fio, o que a realidade me mostrava. Não o que me diziam, mas o que via – a vida como é –, não como deveria ser. Pensei, assim, sobre o que significa ter uma palavra na boca e outra no coração. Exercício religioso.
Hoje, bem distante do homem atolado na crendice, apático e despolitizado que era, encontrei libertação interior na simples busca pelo conhecimento. Esse processo leva tempo. Requer boa carga de humildade e abertura para se alcançar espírito livre, entretanto, reaprende-se a pensar.
Achei que devia algo a mim mesmo: ser honesto com a posição religiosa – a partir do conhecimento científico –, não com as historinhas de Deus que me contavam. Como não recebia atenção ao procurar as pessoas, pois elas raramente queriam falar de Deus (por absoluto despreparo intelectual), adotei um empirismo trivial como defesa. Olhava em todas as direções para detalhes, palavras, filosofices, gestos ensaiados e atitudes tendenciosas dos mamíferos humanos religiosos. Vi um cenário diferente, analisei com método. Deparei-me com clichês assombrosos, mas era hora de escapar do senso comum com urgência. Então, busquei coragem e me curvei diante das vias da razão. Valeu a pena!
Cheguei honestamente à conclusão de que, apesar dos defeitos horríveis que a seleção natural nos legou, que expõe nossa origem inferior, tais defeitos ficam ainda mais doentios e aleijados ocultos pelo verniz religioso. A partir daí, não consegui mais conciliar a fé com a ciência e abandonei a crença no deus dos sectários.
A razão primacial que me motivou a escrever esta obra foi mostrar ao leitor que o dever moral e a bondade, se fazem parte do nosso interior, jamais representam qualquer tipo de fé, tampouco são devidos às religiões em geral. Foram ensinamentos dos nossos pais ou uma atitude moral que tomamos diante da vida.
O autor.
CAPÍTULO I
Desvios cognitivos
Nosso cérebro é uma fábrica de crenças e somos programados pela natureza para crer nas coisas que normalmente não existem. Como a mente é um constructo do cérebro e a seleção natural nos contemplou com o instinto de rebanho, somos programados em grupo para buscar modelos significantes, contendo ou não algum sentido, para depois infundir a sensação de lógica nesses próprios modelos. Claro está que, se estabelecemos padrões, logo geramos outros. Nossa mente nos engana para nos fazer felizes.
Acontece que, na ultramodernidade, emergiu o conceito da “crença na crença”, talvez pelo concomitante afloramento do relativismo da verdade, que passou a fazer parte do cardápio cultural do nosso tempo. Como não é mais possível cobrar do senso comum crença em A, B ou C, a menos que haja crença em algo, ainda é melhor que o nada, porque o nada, nada é. Um pressuposto, não? Pode-se crer talvez no vento, nas mariposas xamânicas ou em qualquer outra referência que nos chegue. Essa ideia agrega e atende ao necessário que propõe o espírito de coletividade, embora seja uma falsa premissa, pois não passamos de primatas sociais que sofrem de constantes desvios cognitivos.
Os padrões de crença são introjetados nas crianças desde cedo e isso se torna um processo extremamente covarde, poderoso, que talvez permaneça pelo resto da existência. Essas crianças quando crescem, às vezes, abandonam as crenças. Ou as adotam em definitivo através de influência hereditária, reforçadas por imensas bagagens de argumentos, que se pretendem convincentes, com o fim de perpetuar a crença dos genitores e progenitores. Torna-se, assim, mais o cumprimento de um rito familiar – um tipo de continuidade –, um compromisso enraizado. É como se a religião dos pais viesse através do leite materno. Na verdade, esses padrões de crenças familiares se enraízam de forma duradoura, de modo ritualístico, um tipo de tributo prestado aos próprios antepassados.
A questão primordial da vida é o sentido que implantamos nela e o significado que lhe conferimos. O cérebro outorga à mente a propagação desenfreada de modelos de crenças, tarefa biológica para atuar como proteção ao indivíduo, sem que importe muito a veracidade da crença em questão. Para o cérebro, não funciona a qualidade da crença que o indivíduo escolha. Importa antes que os modelos fortaleçam as crenças selecionadas: são biologicamente protetivas, mesmo que não façam nenhum sentido teológico.
O importante é acreditar em qualquer coisa para que se alcance a estabilidade emocional? A saúde, então, tende a ficar do lado do homem que tenha fé até num par de sapatos velhos? A estabilidade emocional do indivíduo parece ficar restaurada, mas desde que ele seja fiel aos princípios do que a crença selecionada propõe e impõe, para que se efetive a sintonia neuronal.
Pelo ângulo exposto, surgem retalhos, produção neural, que vão compor um conceito e, em seguida, solidificá-lo através de uma sustentação intelectual qualquer. São certos paradigmas que podem conter ou não um significado real. Quando não há traços de razão ou cientificidade na construção dos conceitos, o que resta mesmo é o que se denomina de desvio cognitivo. São esses desvios que moldam e reforçam as crenças. Tanto isso faz sentido para a neurociência, que temos há séculos o credo quia absurdum est[2]...
Nossos neurônios pedem coalizões. Portanto, o resultado disso é a necessidade da busca, na mente dos mamíferos cognitivos como nós, pelos que mantêm a mesma linha de pensamento em crendices e voos religiosos imaginários. Nessa busca, tudo que se situar fora do mundo perceptivo do crente, passa a ser preterido e até demonizado. Criei o termo e chamo isto de inferência paradigmal injuntiva.
Quanto mais mergulhamos na crença que nos dá um suposto equilíbrio, amparados pela estrutura neural, mais cresce a tendência de execrar aqueles que estão fora do nosso contexto perceptivo. Chamo isto de presunção de inequivocidade fideísta.
Teria a seleção natural nos legado tal conduta involuntária? Longe disso, é apenas como o cérebro funciona para proteger o indivíduo e definir o instinto de rebanho – ao tempo que produz coalizões protetivas imprescindíveis. Afinal de contas, a natureza não é boa nem má: apenas nos fornece os meios adaptativos. Precisávamos formar bandos, hordas, grupos – grupos sociais. Por exemplo, os que se reúnem em torcida de um determinado time de futebol; em torno dos jogos preferidos; de esportes; associações culturais; filantrópicas e, por fim, religiosas. “Meu time é o melhor e a minha religião também! A crença que escolhi é a verdadeira. Todas as religiões são boas, mas a minha é a melhor”. Deduzimos, assim, que essas afirmações provêm dos processos cognitivos desviantes e outorgam ao indivíduo a sensação de certeza.
O indivíduo só vê qualquer coisa dentro do que acredita, porque já perdeu uma série de pontos de conexão com a realidade e o maior perigo não é a crença em si, mas a convicção dela. Esse princípio guarda relação com o problema da ancestralidade. A família, semente da religião: os pais primeiro, depois, os parentes mais chegados e os amigos que servem de modelo moral. São aqueles que parecem trazer a novidade que oferece o resgate para todos os problemas. Os que impressionam – merecem ser ouvidos e seguidos. Enfim, trata-se de uma nova vida. Pelo menos no verniz das coisas... Toda crença, porém, não passa de verdade provisória e sempre está baseada na inferência paradigmal injuntiva. É também uma questão de segurança interior, o que a religião paterna outorga ao indivíduo de maneira invariável.
Existem duas vertentes para a crença no Todo-poderoso. A primeira delas se manifesta como crença numa energia vital, num absoluto impessoal, que se resume à força superior tão somente, sem que haja interferência com os moradores da Terra. Um tipo de deísmo. A segunda vertente, mais corriqueira, é a crença num deus pessoal que nos orienta até quando devemos tomar um cafezinho...
Se algo positivo ocorre em nossa vida, significa que nossas orações foram atendidas pela misericórdia de Deus, ou pelos atributos da nossa fé. Se, ao contrário, algo ruim acontece, é porque Deus prova a nossa fé para aumentá-la, ou porque ainda não é o momento de respostas e isso sempre fará parte do plano divino. Ou, até mesmo, porque Ele resolveu “pesar a mão” sobre nós por várias concupiscências... Essas explicações foram bem construídas, dos antigos hebreus até a cristandade.
Os desvios cognitivos, responsáveis pelas nossas crendices, é que nos fazem desdobrar nossas fantasias, na “constatação” de experiências pessoais com o divino, a ponto de pedir a Deus a vitória do nosso time de futebol e outras besteiras correlatas, que fazem parte da compreensão neanderthalensis.
Notícias políticas, conflitos, tragédias do mundo e fatos sociais narrados pela imprensa, assumem ares escatológicos para os crentes, apocalipsistas enfermos. Intérpretes do catastrofismo nas ocorrências no planeta. Os dias que passam representam para eles o fim do mundo e nos vemos diante do inequívoco ultimatum para a conversão, caso contrário, o que nos sobra é a danação eterna. Só que para cada “conversão” existe uma cor doutrinária e limites diferentes que estabelecem a intensidade da margem estreita do dogma certitudo salutis[3], ilusão que representa passaporte para o céu.
A propagação e difusão do medo regulam o dia a dia dos crentes. Eles não conseguem chegar à percepção de que tantos fatos trágicos, presenciados hoje por nós, são o resultado das leis da natureza em reação à superpopulação mundial. Não entendem que a explosão demográfica desproporcional se espalha sobre a Terra e que o controle da natalidade seria a solução para o planeta, entretanto, eles mal aceitam o planejamento familiar, quanto mais controle da natalidade. Seria do Asmodeus a invenção da pílula?...
A grande prova de que passamos pouco de primatas sociais, é a existência da crença na magia, no xamanismo, desvio que pertence ao gênero homo. A estrutura biológica favorável à crença é tão forte que parece ter nascido com o homem. O cérebro do crente[4], predisposto ao além, envia para a mente a capacidade de “ver” coisas, de encontrar paradigmas significantes em tudo, para depois infundir lógica a esses modelos. É a ação neural que cria mecanismos pseudonecessários ao equilíbrio emocional. “Achismos” do senso comum situam-se na ordem da inferência paradigmal injuntiva, enquanto que a tentativa de incutir uma lógica infundada estaria num plano menos racional ainda, que denomino de relata refero.[5]
É do homem a presunção de dominar o próximo. Nada melhor, então, do que a invenção das fábulas grosseiras que encerrem ameaças primitivas e promovam o desenvolvimento do medo, através da criação de figuras imaginárias, numa expressão mais ampla do termo. Não importa o grau de incoerência dessas figuras, isso até ajuda no distanciamento da lógica para que as fés se justifiquem. No binômio culpa-medo se hospeda a força religiosa.
Quanto mais irracional é a fé, embora contenha uma nuvem passageira, mais rápida é a possibilidade de chamar atenção. As novidades são uma isca cativante para despertar o interesse dos incautos. En passant, pelos atalhos da subversão intelectual, cabe ao sacerdote provocar um incidente ilusório-perceptivo para chegar à sujeição do homem pelo homem. É aí, então, que contemplamos em cheio o maior exemplo de que a religião não passa de um subproduto da atividade neural.
Outro componente básico, que parece ser imanente ao homem, usado de forma sutilíssima pelo clero, é a superstição. Um mal de várias faces da ignorância rasteira, como no caso das crendices populares, à potencialização, quando é camuflada na aparência e escamoteada na intenção por instituições mais pretensiosas. Por isso, são muitas as formas de superstição criadas pela cristandade e combatidas simultaneamente.
A Igreja alimenta e utiliza tal sentimento de medo com jeito velado, sob as múltiplas carapuças, para conduzir os fiéis aos grilhões da fé, porque a superstição é o instrumento mais eficaz do clero. Os próprios sacerdotes condenam seus arquétipos explícitos em público, enquanto fazem uso dissuasório dos venenos menos aparentes em silêncio. Se observarmos com atenção a técnica empregada pelo clero para inocular a superstição na mente dos que não têm a razão como seu fio condutor, entenderemos o que é um devoto. É aquele que constrói castelos, busca no sobrenatural a felicidade, deixa-se envolver ingenuamente por emoções banais que procura no além e nunca dá o braço a torcer.
Por que cremos em algo?
Somos uma máquina de superstições no dia a dia. É claro que muitos conseguem atingir o estado ilusório de superação desse mal através de princípios subjetivos de fé. No protestantismo, por exemplo, ser supersticioso significa falta completa de libertação espiritual diante da própria comunidade de irmãos. Na tentativa interior para ocultar dessa mesma comunidade qualquer traço de sentimento supersticioso, o crente dissimula um verdadeiro pânico íntimo. Finge uma atitude de autodeterminação para não transparecer suas figuras imaginárias e monstros do subconsciente. Já que o sono da razão produz monstros.
Todos os medos agora estão bem administrados, escondidos e entregues ao Eterno. Mais uma vez, a opção se repete: o mundo da fantasia ocupa o lugar da realidade. A Igreja combate a superstição grosseira com a superstição de refino, lapidada, pasteurização de tudo. O que Deus pasteuriza não é discutível – acta est fabula![6]
Nossa natureza anseia por fantasmas. Somos sonhadores natos, inclinados à fantasmagoria. Conferimos valores e significados às coisas sobrenaturais como algo imprescindível a nossas vidas. Para os fideístas, esses fatos originam-se no sobrenatural e são projetados no mundo. Para a ciência, têm fluxo na mente e não passam de ilusões aleatórias, geradas em bruto pelo cérebro.
A crença em duendes, espíritos e fenômenos paranormais são produtos da inferência paradigmal injuntiva. Assim, esse tipo de ocorrência “sobrenatural” assume um aspecto de verdade, pois o crente considera a proposição das ocorrências transcendentais uma certeza absoluta.
Entretanto, essa “certeza absoluta”, fabricada na mente do fiel, é abalada pela dúvida, uma vez que as fontes das nossas certezas permanecem falíveis. O princípio fundacionalista do conhecimento busca pilares para alicerçar as crenças. Assim como os intrincados processos cognitivos são responsáveis pela consciência e pelo conhecimento, nesses processos há desvios cognitivos, que vamos encontrar na esfera das crenças especialmente.
O crente acaba por sucumbir à esteira do solipsismo, que nada mais é do que chegar ao ponto extremo de se convencer de que o conhecimento se baseia em situações de experiências interiores e pessoais. Assim, a tendência do crédulo no além é valorizar apenas suas experiências espirituais como verdadeiras, porque, para o religioso solipsista, só a sua experiência é autêntica.
Constrói-se esse tipo de comportamento apoiado na muleta dos dogmas, na intransigência e no fundamentalismo. Comportamento que resulta da mistura de um solipsismo contumaz e uma atitude farisaica de subserviência para bajular a clericalha. Toma lugar, assim, a consciência coletiva dos grupos religiosos.
Temos um desvio congênito: a necessidade de venerar algo em resistência aos princípios da racionalidade. Essa medida imposta pelo cérebro estabelece paradoxos: quanto maior a absurdidade do fato espiritual, mais forte será a nossa crença nele e o sectarismo vira uma máquina ontológica de moer carne...
Nosso cérebro constrói aquilo que se conhece como mente, portanto, essa coisa falaciosa de priorizar a ideia de mente isolada da atividade cerebral é uma peça da religião pregada nos crédulos, que vivem nas nuvens cor de rosa. A mente é apenas o resultado das conexões neurais em atividade.
A crença sectária pretende anular esse princípio, já assentado pela neurociência, para distorcer o cientificismo legítimo, abrindo um imenso leque de embromações amparadas pela fé. Um festim religioso com os truques do custo-benefício oferecido pela Igreja. A convicção sectária é pior: escraviza, subverte e faz o sentido inverso, passa pela mente para retornar ao cérebro. Esse estágio só acontece quando se define a confirmação emocional da crença.
A dopamina é um neurotransmissor presente na suprarrenal e indispensável para a atividade normal do cérebro. Esta substância química transmissora é chamada por Michael Shermer de “a droga da crença”. O doutor Shermer expõe assim a atuação da dopamina no cérebro: “A conexão de dopamina e crença foi estabelecida por experimentos que Peter Brugger e sua colega Christine Mohr conduziram na Universidade de Bristol, na Inglaterra. Explorando a neuroquímica da superstição, do pensamento mágico e da crença na paranormalidade, Brugger e Mohr descobriram que pessoas com altos níveis de dopamina têm maior probabilidade de encontrar sentido nas coincidências e descobrir significados e padrões onde eles não existem. Em um estudo, por exemplo, eles compararam vinte pessoas que afirmavam acreditar em fantasmas, deuses, espíritos e conspirações, com vinte pessoas que se declararam céticas em relação a esses fenômenos. Eles exibiram a todos os sujeitos uma série de slides com rostos de pessoas, alguns normais e outros com certas partes embaralhadas, como olhos, ouvidos ou nariz trocados. Em outro experimento, palavras existentes e misturadas foram exibidas. Em geral, os cientistas descobriram que os crentes tinham muito mais probabilidade que os céticos de avaliar um rosto deformado e uma palavra embaralhada como normais”.
Pelo fato de não sermos monistas por natureza e sim dualistas, entendemos (por cognição desviante) que nossa mente existe de forma independente do cérebro. Lógico, é o meio que temos para perpetuar nossa mente (como alma) no céu futuro, independente do corpo. Essa é uma tendência difícil de ser dissipada.
Quase todos nós precisamos da ideia de paraíso, por essa razão o cérebro ajuda a nossa mente a produzir o que queremos para estabilizar as emoções. Mas, deixando de lado a ilusão, os desejos e ideais, quando o cérebro acaba a mente também se extingue. A mente é apenas o que o cérebro construiu em vida. Se não há conexões neurais, não há mente.
Não podemos culpar o cérebro por “dar” à mente religião. Nosso instinto é de rebanho e a mente “pede” ao cérebro a fantasia, por isso o cérebro, como pai protetor, atende a exigência biológica em prol do equilíbrio orgânico, para que se vislumbre a alegria do paraíso almejado.
Não sei o porquê, mas a seleção natural nos brindou, de forma paradoxal, com a crença nas coisas que não existem – fomos programados para tal com a catarse psicorreligiosa. Mesmo que não acreditemos em Deus, existe o lado biológico da crença: a ideia da figura de um ser superior latente plantada em nosso cérebro. Por essa razão, as crenças afloram facilmente, embora como cognições desviantes, inseridas em um processo de confirmação que o próprio cérebro corrobora.
O cérebro participa desse processo porque seu objeto é o equilíbrio da mente – das emoções –, num sentido biológico construtivo. De novo, podemos observar a constante da inferência paradigmal injuntiva na fabricação dos modelos que precisam ser confirmados. O último degrau no reforço da crença, portanto, é a sua sustentação através de argumentos considerados racionais.
São os desvios cognitivos os responsáveis por adaptar as referências que chegam através dos nossos sentidos, moldando a interpretação do que queremos do mundo e não as dores que a realidade do mundo nos apresenta. Este é o modus operandi do cérebro: pinçar as referências da crença que possam dar equilíbrio emocional e biológico ao indivíduo. Ao confirmar as convicções ideológicas no córtex orbital frontal, que processa as emoções do indivíduo, o cérebro terá cumprido a sua tarefa protetiva do indivíduo.
Na religião há um efeito produzido pela inferência paradigmal injuntiva, que é o instinto de rebanho quando se torna tendencioso no âmbito da fé: esse instinto natural se deforma, ao evoluir para interesses mais complexos, por exemplo, a construção do espírito da secta. Constata-se o já citado princípio da presunção de inequivocidade fideísta, que nada mais é do que a execração de todos os que estão fora do nosso contexto de fé. Ou seja, todo aquele que não pertencer ao nosso grupo religioso, filiado ao mesmo livro sagrado, não é filho de Deus, portanto, tem que ser demonizado... Isso acontece de forma bruta ou sutil, mas é factual e invariável.
Para resumir, o cérebro identifica as possibilidades de convicção ideológica em uma determinada crença, confirmando-as como verdade absoluta. O que importa para o cérebro não é a verdade da crença, mas o estado de convicção do indivíduo na obtenção do equilíbrio biológico. O cérebro não se preocupa em nos dar a vida eterna, mas em promover a nossa sobrevivência. Isto soa como algo patético, mas é real e de fácil apreensão.
A seleção natural programou-nos como seres gregários, por isso o instinto de rebanho. As pessoas, constituídas em grupos, juntas podem alcançar o que sozinhas não conseguem realizar. O grupo protege, representa o indivíduo e promove o corporativismo, tão necessário ao sucesso de uma comunidade religiosa. A corporação religiosa é uma forma de empresa social que cria os dogmas para regular o intercâmbio do indivíduo com Deus, sob a aprovação irrestrita e unânime dos seus componentes.
Então, veja-se. A crença é acionada não só pelo cérebro, mas no plano social, pelo Estado. A ideia da “crença na crença” é de autoria de um governo geral – de um projeto coligado. O investir na crença constitui enorme força social em si mesma e, para que haja a democracia conhecida, é imprescindível que a crença exista. Não importa a forma. É análogo aos processos neurais: para o cérebro a veracidade de determinada crença não é significativa e, sim, que a crença vigore para conferir segurança ao sujeito. Da mesma forma, para o Estado, o que importa é que haja crença para que a estabilidade social seja garantida, através do idealismo.
A manutenção da crença religiosa, portanto, é tarefa indireta do Estado, que a protege como instrumento da democracia. Temos um exemplo claro: é preciso que o homem sustente a sensação de liberdade, logo, a crença no livre-arbítrio deve manter-se em larga escala. É apenas uma questão de estratégia do poder, que tem o dever de sobrepujar a inclinação individual da busca pela verdade, vetando ao indivíduo desmascarar os mitos, sustentados a todo custo através dos responsáveis pelos pilares político-sociais. Quando surge alguém para esclarecer o outro, sabe-se o final.
Devemos crer em algo? Lógico! No vento, nas borboletas, no trabalho, no amor, no dinheiro, em deuses, ou no que quisermos. Mas no que quisermos de fato – por nós mesmos –, porque crer na religião é crer em normas, dogmas, doutrinas, que os outros escolhem para que creiamos dentro da visão deles e para eles. Sobretudo, para o bolso da cúpula dos abutres vorazes.
Reaprendendo a pensar
Por que reaprender a pensar? Simplesmente para juntar os cacos quebrados e usar nosso maior dom da natureza, o poder da reflexão. Processo que envolve um retorno gigantesco do ponto em que chegamos ao ponto de partida. Do desvio cognitivo ao ponto de restauração – para que haja reparo da nossa equivocidade cognitiva e recuperação do tempo perdido. Isso é mais do que um ato de humildade. Requer muita vontade, coragem, apego ao conhecimento e inconformismo com o senso comum.
Quando despertamos para as verdades científicas, não fica difícil perceber logo de saída que a verdade absoluta pode existir ou não. Por outro lado, a afirmação de que cada um tem a sua verdade é uma premissa falsa mantida pelas assertivas do populacho.
Esse tipo de coisa é o que encoraja a sustentação alucinada de tantas verdades extravagantes que circulam pelo mundo. Mas é a crença particular no método científico que nos dá um tipo de verdade diferente das outras: o que pode ser demonstrado com os seus resultados evidentes. Universais e não individuais. A ciência não joga com baboseiras esquizoides ou “achismos” alternativos. Uma verdade científica, quando comprovada, não muda a vida romântica de um indivíduo, muda a humanidade.
Então, como pensar? Como ordenar o pensamento para não dar voltas no deserto? Normalmente, não olhamos a vida por um prisma simples. A própria ciência conserva os seus métodos que funcionam baseados na simplicidade. Mas se a verdade absoluta não existir, o que nos vai restar então? Resta-nos já, de invariável meio, a adoção de uma divisa: a dúvida de tudo. A partir daí, só a verdade científica poderá produzir provas e nos dar respostas reais. Então, à luz do cientificismo, uma verdade será absoluta, uma vez comprovada, na medida em que seu núcleo se enriqueça com a adição de outras verdades comprovadas, que gera um processo evolutivo do absoluto expandido.
Um exemplo disso seria a teoria da seleção natural de Darwin, provada verdadeira no século dezenove e hoje, enriquecida por novas descobertas (no campo da genética), nunca perdeu o caráter absoluto de verdade. A teoria da seleção natural foi amplamente demonstrada por mais de cem anos. Se caminharmos, entretanto, pelos atalhos da razão, a filosofia vai sempre questionar a “verdade absoluta”, pois é notório que teorias científicas do passado foram enriquecidas com o pressuposto de serem verdades absolutas.
O que pretendo mostrar com isso é que, mesmo em meio a um turbilhão de palpites e opiniões infantis, na tentativa de passar por coisa séria, uma verdade só é passível de ser comprovada através do método científico. Nunca pelas pobres divagações religiosas em que o clero tenta se escorar.
Dentro dos mesmos princípios, Richard Dawkins[7] desfaz mal-entendidos que comumente geram confusão: “A ciência não pode responder se o aborto é um procedimento incorreto, mas ela pode mostrar que o continuum (embriológico), que liga de maneira ininterrupta um feto desprovido de percepções a um adulto dotado de consciência, é análogo ao continuum (evolutivo), que liga os humanos às outras espécies. Se o continuum embriológico aparenta ser mais ininterrupto, é somente porque o continuum evolutivo é dividido pelas contingências da extinção. Os princípios fundamentais da ética não deveriam depender das contingências acidentais da extinção. Para dizer uma vez mais, a ciência não tem meios de responder se um aborto é um assassinato, enquanto matar chimpanzés não é. É preciso ser coerente. A ciência não tem meios de responder se é errado clonar um ser humano completo. Porém, ela pode esclarecer que um clone, como a Dolly, nada mais é do que um gêmeo idêntico, embora de idade diferente. A ciência pode nos ensinar que, se quisermos nos opor à clonagem dos humanos, não devemos apelar para os argumentos do estilo ‘o clone não seria uma pessoa inteira’ ou ‘o clone não teria alma’. A ciência não tem como responder se as pessoas têm alma, mas ela pode afirmar que, se os gêmeos idênticos têm almas, então os clones como a Dolly também têm. É preciso ser coerente. A ciência não pode responder se a clonagem de células-tronco para produzir ‘órgãos avulsos’ é incorreta. Mas ela pode nos desafiar a explicar de que maneira a clonagem de células-tronco difere, do ponto de vista moral, de outro procedimento aceito há muito tempo: a cultura de tecidos. A cultura de tecidos tem sido há décadas um dos principais suportes da pesquisa sobre o câncer. A famosa linhagem de células HeLa, que se originou da falecida Henrietta Lacks em 1951, é hoje cultivada em laboratórios por todo o mundo. Um laboratório padrão, na Universidade da Califórnia, produz 48 litros de célula HeLa por dia, como um serviço de rotina para os pesquisadores da universidade. A produção diária mundial total de células HeLa deve pesar algumas toneladas – toda ela um gigantesco clone de Henrietta Lacks. Durante o meio século desde que essa produção em massa começou, ninguém parece ter feito objeção alguma a ela. Os agitadores que se unem para pôr um fim à pesquisa com células-tronco hoje em dia, precisam explicar por que razão eles não se opõem ao cultivo em massa de células HeLa. É preciso ser coerente”.
Parece que o mundo está grávido de outro mundo. Muito bem, se é hora de se questionar tudo: raça, etnia, minorias, opção sexual e outros, por que, então, não podemos discutir a opção dos que não creem em mitos, religiões ou no próprio Deus?
Richard Dawkins traz à tona um discurso de seu grande amigo Douglas Adams, em 1998:
“Ora, o método científico é, estou certo de que todos vão concordar, a mais poderosa ideia intelectual, a mais poderosa estrutura para a reflexão, a investigação, a compreensão e o enfrentamento do mundo à nossa volta, e ele se baseia na premissa de que toda ideia pode ser atacada. Se resiste ao ataque, ela sobrevive, e, se não resiste, então ela vai por água abaixo. Com a religião as coisas não se passam dessa forma. A religião tem certas ideias centrais, que chamamos de sagradas ou de divinas ou de seja lá do que for. O que isso significa é: ‘Eis aqui uma ideia ou uma noção que não pode ser alvo de críticas; isso simplesmente não é permitido. E por que não? – Porque não!’. Se alguém vota num partido cujas ideias não aprovamos, somos livres para argumentar contra elas o quanto quisermos; haverá atritos, mas ninguém se sentirá lesado por isso. Se alguém acredita que os impostos deveriam aumentar ou diminuir, somos livres para divergir de tal opinião. Mas, por outro lado, se alguém diz ‘Não posso mover uma palha no sábado’, nós dizemos ‘Eu respeito isso’. O estranho é que, enquanto estou dizendo isso, me surpreendo pensando: ‘Será que há algum judeu ortodoxo na plateia, que se sentirá ofendido pela minha fala?’. No entanto, eu não teria pensado: ‘Talvez haja alguém de esquerda ou alguém de direita ou alguém filiado a esta ou àquela visão em economia’, enquanto levantava outras questões. Tudo o que eu pensaria em relação a isso é ‘Muito bem, nós temos opiniões diferentes’. Mas no momento em que digo algo que tem relação com as crenças (vou arriscar meu pescoço aqui e dizer) irracionais de alguém, então nos tornamos todos extremamente paternalistas e terrivelmente defensivos e dizemos: ‘Nós não atacamos isso; trata-se de uma crença irracional, mas, não, nós a respeitamos’. Por que será que consideramos perfeitamente legítimo apoiar o partido Trabalhista ou o partido Conservador, os Republicanos ou os Democratas, esse modelo econômico em oposição àquele, o Macintosh em vez do Windows – mas ter uma opinião sobre o modo como o universo começou, sobre quem criou o universo... Não, isso é sagrado? O que isso significa? Por que razões ergueram uma cerca protetora em torno disso, senão pelo fato de que simplesmente nos habituamos a fazê-lo? Não há absolutamente nenhum outro motivo; trata-se apenas de um acordo que se desenvolveu insidiosamente e, numa espécie de círculo vicioso, tornou-se muito, muito poderoso. Assim, nos acostumamos a não desafiar as ideias religiosas. Mas é muito interessante o furor que Richard cria ao fazê-lo! Todos ficam absolutamente enlouquecidos, pois não é permitido dizer tais coisas. E, entretanto, quando as examinamos racionalmente, não há nenhuma razão por que essas ideias não devam estar abertas ao debate como qualquer outra, exceto pelo fato de que, de algum modo, chegamos a um acordo entre nós de que elas não deveriam estar”. Richard Dawkins não é o advogado do Diabo, acho mesmo que advoga pela verdade científica.
Voltaire disse que “Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”. Cá entre nós, Voltaire não mais do que representava uma forma caduca e indolente de divindade, o deísmo... Aqui, voltamos ao problema da biologia da crença: a figura de um ser superior está arraigada em nosso cérebro. É algo que nasce com o homem. Vem no leite materno em bruto e é trabalhado na mente da criança desde cedo, logo é uma ação neurofisiológica.
Considero firmemente que a razão da existência da crença em uma força superior reside, desde a infância, no problema do medo. Esse medo começa no momento em que se entra no mundo, pois saímos da casa de origem: o útero materno. Começamos, então, a jornada numa nova morada – provisória. Portanto, retomo os mesmos princípios aqui e ali, pois são viscerais. Argumentos basilares sobre a existência de Deus, porque estão no interesse de todos, ainda mais sobre as nossas crenças, fatores determinantes e “transformativos” de vida.
A neurociência já demonstrou que a mente é originada da substância física do cérebro e, diante dessa perspectiva, o projeto de alma fica um tanto desabrigado. Aliás, todo o design inteligente. As explicações dúbias, improváveis e fantasiosas, ficam por conta da religião – o mundo como as pessoas desejam que ele seja, mas não como ele é realmente.
Importante, também, é o entendimento de que, se o cérebro fornece escapes fantasiosos à mente e mostra um mundo utópico às vezes, é pelo equilíbrio emocional do indivíduo. Agora, cabe à mente a tarefa de seletor, num exercício do pensamento correto, a prática no desprezo ao caminho fácil e o convencimento de que o método científico é o meio certo para o saber pensar. Difícil é, para a maioria hipócrita, o simples ato de “dar o braço a torcer”.
Como não podemos ser imortais, o cérebro outorga à mente a possibilidade de desenvolver um tipo de pensamento bastante positivo como fator biológico, até recorrente entre os franceses: Pourquoi y-a-t-il quelque chose plutôt que rien?[8] Também, a ideia de que um ser amoroso cuida de nós, por existir um plano especial nas nossas vidas criado por esse ser amoroso, teríamos sido escolhidos por alguma razão para fazermos parte de algo maior no universo.
O reaprender a pensar, então, implica em apurar a mente como seletor para que o cérebro “entenda” que pode dar suporte a essa mesma mente através de informações neurais, ao atuar num processo em constante evolução.
Precisamos entender as coisas como se encaminham no presente século e tratar a miopia intelectual da qual somos reféns. Em absoluto, não se trata de deicídio, tampouco de matar a espiritualidade em nós, mas de reinterpretar a espiritualidade verdadeira como compromisso com o ser moral e com todos os valores que a religião sequestrou de quem de direito: o homem comum. Essa mesma religião que metabolizou o que era próprio do homem administrar para devolvê-lo como uma regurgitação.
Certa vez, ouvi sobre um sacerdote cristão da sua renúncia ao cristianismo. Ele, quando leu A origem das espécies de Darwin, abandonou a Igreja e apontou o ateísmo como única opção honesta no mundo. Argumentava que um deus de amor não teria idealizado um modelo de existência onde a lei dominante é a luta monstruosa pela sobrevivência num planeta superlotado e ruim.
O sacerdote questionava como um deus de amor poderia estabelecer princípios onde a violência da competição teria, entre os animais e os homens, como regra básica, o resultado da crueldade que vai determinar a sobrevivência dos mais fortes. Aquele que melhor se adapta é o que sobrevive... Que deus é esse de tanto amor que projeta as criaturas para se dilacerarem e infunde nelas, ao mesmo tempo, a capacidade de sentir dores intensas? Que deus é esse que nem ao menos anestesia suas criaturas na hora de serem devoradas?...
CAPÍTULO II
A invenção do monoteísmo
Tudo se resume à necessidade de venerar, que parece surgir com o homem. Viria, como já disse, misturada ao leite materno e as primeiras representações de divindades têm mais de dez mil anos.
Nos tempos pré-históricos, os mamíferos do gênero homo já demonstravam preocupações com a morte e praticavam rituais fúnebres, os mais estranhos imagináveis. Nesses ritos, as cores eram fundamentais; juntavam quinquilharias aos corpos; perfumes; enfim, um monte de coisas esdrúxulas que representavam a crença na existência dos seres no além.
As primeiras manifestações de deidades eram de figuras fêmeas, até desembocarem numa entidade “deusa-mãe”. Exatamente a necessidade materna, já que a fêmea sempre se manifestou mais dadivosa e compreensível do que os machos. Tem-se em vida uma fabricação da Nossa Senhora mais recente, que assumiu, por sua vez, não poucas identidades... Bem, a mulher já tem um grande trunfo: ela é sempre a doadora da vida.
Figura preponderante nas culturas antigas é a “grande-mãe”, a deusa-vaca Hathor, ama de leite dos primeiros reis da Suméria, onipresente no céu, na terra, nas águas abaixo da terra e no útero. No estágio neolítico, era a “deusa-terra”, mãe-protetora-nutridora da vida e que abarcava os mortos para que fossem renascidos. Nela estavam reunidos os valores transcendentais e míticos da grande deusa protetora. O pai, simplesmente, não existe nessa mitologia. A grande mãe é nutridora, protetora, destrutiva e devoradora, era dualista – mãe boa e má ao mesmo tempo. Essa figura da grande mãe foi o primeiro objeto de adoração do homo sapiens. A entidade do alvorecer da nossa espécie.
Adiante, desenvolveu-se o conceito da deusa-mãe, que copulava e dava à luz touros. Depois que a grande mãe, a grande deusa, virou instituição, iniciaram-se as atividades ritualísticas, segundo a cabeça daqueles paranoicos, é lógico. A partir daí, os homens descobriram que certas práticas necessitavam ser transformadas em normas indiscutíveis, pois seriam administradas por seres do além e, invariavelmente, o “sagrado” tinha que virar convenção. Assim, cada comunidade aceitava as regras do seu xamã e pronto, sendo o primeiro passo da religião.
Como sagrado é sentimento, os primeiros manipuladores da fé descobriram meios de enganar os seus iguais – a exploração do homem pelo homem. Quando existe um forte respeito a alguma coisa com o assentimento coletivo, tal coisa eleita como sagrada jamais pode ser contestada ou rejeitada. São engraçadas essas baboseiras sobre o sagrado, não? Paremos para pensar nisso. Se refletirmos honestamente e priorizarmos a razão, perceberemos que o “sagrado” é a maior peça já pregada na civilização... É algo tão hipócrita, tolo, infantil, que riremos algum dia do nosso passado de crendices e fantasias ao acordarmos.
No período em que o homem primitivo abandonou as cavernas para construir as primeiras casas, tornou-se sedentário. O conceito de xamanismo foi diluído. O homem deixa de lado a adoração das ocorrências fenomênicas da natureza, como as tempestades, os raios, os trovões, o fogo, as formações de nuvens, para achar um processo de identificação com ele mesmo, o antropomorfismo. Essas formas teriam que ser idênticas ao próprio homem, mas com alto nível de perfeição admitida, mas superior aos homens em tudo. Consubstanciaram-se, então, os graus de sacralização.
Do xamã ao sacerdote, do sujeito que dançava, fazia piruetas e urrava para invocar os espíritos, àqueles que usavam mais a mente para enganar os seus iguais – a classe sacerdotal se masculiniza de repente. O porquê, ninguém chegou à conclusão, mas foi o início do machismo na propagação da fé e os deuses pressupunham-se masculinos – é óbvio.
Vale, por antecipação, que Michelangelo, com base nesses primórdios, pintou um deus no teto da Sistina que toca o dedo de Adão. Imagine-se aquela vasta barba branca cheia de ácaros – de dermatoses por baixo –, sem fazer absolutamente nada até criar Adão. Aquele deus “jogava paciência” por milênios seguidos até, supostamente, chegar à conclusão de criar essa coisa inviável, nojenta, reles e indolente, chamado homem, que povoou a terra só criando problemas, já que o vazio teria sido bem melhor... Depois ainda surgiu o culto aos antepassados – deu-se uma febre de venerar ossos, na aurora da humanidade. Acho que tratamos aqui de um deus minimamente indolente e irresponsável.
Freud, no início do século vinte, reuniu-se com Jung num congresso de psicanálise em Viena e discutiram fortemente sobre o patriarcado na história, a ponto de Freud cair no chão motivado por uma síncope oriunda dos ataques de Jung. Principiava a ruptura entre os dois. Deu-se o problema quando discutiam os mitos judaicos. Freud sustentou o nascimento do monoteísmo baseado no faraó Amenófis IV, da décima oitava dinastia (alguns afirmam que era Amenhotep IV), que tomou a posteriori o nome de Akhenathon, “Adorador do sol e herético”.
Os faraós seguiam o politeísmo. Mas Amenófis, com sua mulher Nefertite, contrariou as regras e instituiu o deus Athon, que era o sol, em lugar do culto a Amon, deus oficial do Egito. Amon deveria ser preterido, dando lugar a Athon, único deus – o sol divino. Amenófis entendeu a superioridade do deus sol sobre todos os outros deuses, por isso foi reconhecido como pai comum dos homens, o Dadivoso. Os ideais do faraó elevaram-no ao principal dos reis egípcios e um dos primeiros reformadores da humanidade. Amenófis, que encabeçou batalhas, aprofundou a filosofia do antigo Egito, impôs reformas religiosas e sociais como nenhum outro – ficou famoso por seus feitos heroicos. Divulgou os ensinamentos de Athon nas raízes da verdade e do amor.
No seu palácio, em 1370 a.C., ao lado de Nefertite e seu séquito, proclamou: “Egípcios, desde que uso a coroa, examinei tudo o que existe. Nosso povo se prende à idolatria e venera um exército de deuses que estão abaixo de Amon, cujo pontífice é Beckanchos. Eu, porém, declaro que não há nenhuma divindade que deseje ser adorada por meio de sangue, homicídio e sacrifícios; afastai-vos do culto aos deuses. Só há um deus que paira sobre tudo e dirige nosso destino. Nosso deus é Athon! Deus do sol, o próprio sol, que a todos sustenta. Renuncieis a Amon e a seus deuses e segui minha doutrina. Sejamos todos iguais agora, antes que a morte nos iguale. Os seminários estão fechados, os sacerdotes nunca foram servos de deus. Sua doutrina é uma heresia e deve ser negada! Fecho todos os templos de Amon, as fontes de renda dos sacerdotes. Confisco seus estaleiros e navios, oficinas e pedreiras, todas as terras e celeiros, e todo o gado dos sacerdotes, que, em raiva incontida e despotismo, constituem um Estado dentro da nação. Os sacerdotes não são mais imunes e podem ser levados ao tribunal. Todos os semíticos, provenientes da Babilônia e que introduziram costumes reprováveis no Egito, devem ser expulsos”. A primeira manifestação machista da Antiguidade.
As coisas caminharam em paz por muito tempo, até que Akhenathon começou a radicalizar o culto a Athon de tal forma que o povo se revoltou e, aos poucos, diante dos fanatismos de Akhenathon, a doutrina do deus sol apagou-se. A ideologia de Akhenathon só durou dezenove anos, embora tenha exercido uma política de clemência, justiça e tolerância. Os amigos deixaram-no; a própria esposa e seu sacerdote. Abandonaram-no todos, como os ratos abandonam o navio a naufragar. Até seu médico coroou a traição quando ministrou ao rei um “medicamento”, a mando dos sacerdotes, que era puro veneno...
Nesse ângulo, deixou o Egito um dos maiores pacificadores da Antiguidade. Suas últimas palavras (devidamente documentadas) foram: “O reino eterno não pode ser colocado dentre dos limites terrestres. Tudo retornará ao antigo. O medo, o ódio, e a injustiça voltarão a reinar e os homens sofrerão novamente. Teria sido melhor não ter nascido, para que não viesse todo o mal que há sobre a terra”.
A religião de Amon retornou, com o turbilhão de deuses, e sua vitória foi proclamada pelo novo faraó, através de um decreto. Numa concordata entre os sacerdotes e outros faraós, a religião de Amon foi restabelecida. Aqui, então, começa a história que nos interessa: a invenção do Livro – logo, da religião do Livro –, a construção da “infalível” palavra de Deus... Quantos tijolos, pedras gravadas, papiros, pergaminhos, milhares de cópias forjadas. Livro, objeto, decepção – “e os homens sofrerão novamente”. E, assim, preparou-se o caminho para um deus mais duradouro.
Once upon a time[9], um grupelho bronco, xucro, mas ardiloso, concebeu por intuição cheia de veneno o marketing mais esperto arquitetado até então. Diante da confusão daquele mundinho cego, barbárie das antigas, o grupo esperto começou a cogitar na criação de um deus que poderia ter uma prole inicial e se tornar o pai de uma grande nação. Essa pretensa nação poderia dar ao deus grandes alegrias, aborrecimentos, mas, sobretudo, alimentar um marketing perfeito do seu nome pelos quatro cantos da Terra... Por que não usar os fatos recentes que um novo monoteísmo poderia exibir? Por que não um paizão protetor de uma raça inteira?
Um povo escolhido por Deus. Para que mais? Na mente de quem tenha nascido no século vinte e um, esse conceito poderia encontrar espaço? Onde há coerência no fato de Deus priorizar um povo cheio dos mesmos erros que outros povos “ímpios” cometiam e ainda ser escolhido como povo de Deus? É uma questão de pura reflexão. Que Deus seria esse? O de um pretérito lendário! Qual o motivo dessa crença hoje? De manter sagradas as lendas! Por isso, ainda nos arrastamos como répteis cognitivos em plena época dos genomas, bóson de Higgs e arquivos nas nuvens...
Mas lenda quando fica sagrada, dura. Pertencer a um povo eleito que não precisa fazer força para ser feliz, aliás, para nada, deve ser muito bom. De forma natural, esse povo se assume como dono do ouro e da prata, conforme conta a Torah.
Para que um povo escolhido se caracterize como tal, entretanto, pressupõe-se uma nação, regras, leis, ordenanças, conquistas, bem-aventuranças, deveres e obrigações. É preciso, então, que um livro contenha tudo isso e ainda mais: que o relato da epopeia do tal povo eleito se torne inquestionável. Sagrado. Aí está o sucesso do livro. O sagrado é temido, amado e obedecido pela massa.
O que significa sagrado? Algo sagrado não seria um desvio cognitivo enviado pelo cérebro à nossa mente para também nos dar a sensação de paz e ordem social? Esse é o tema central a ser analisado neste livro, pelo questionamento do sagrado hoje. Uma purgação falsídica produzida pelo clero.
A única referência escrita nos anais egípcios sobre os hebreus da Antiguidade, foi a descoberta entre as ruínas de uma coluna do templo do faraó Merenptah, cerca de 1200 a.C., que diz: “Israel foi destruída e não existe mais a sua semente”. É só o que se tem escrito pelos egípcios sobre Israel. Não há nenhum Abrahão histórico. Nenhum Moisés histórico. Absolutamente nada que possa ser sustentado sob o ponto de vista científico ou pelo método histórico-crítico sobre o “povo de Deus” e sua epopeia. A não ser a própria Torah, o Pentateuco, que são os cinco livros que compõem a lei judaica: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Nasce a suspeição de literatura exclusivista.
Aquele grupinho mesopotâmico, autóctone, xucro, sumamente fossilizado, porém esperto em contrapartida, esperto no que entendemos hoje: o malandro de carteirinha mesmo. O “safo”! Autóctone, o sujeito da região, do local, do pedaço... Pois o cara mais esperto sempre foi o que se deu melhor! Eles eram daquela região do mapa e precisavam inventar algo maior que resolvesse a situação da existência social do próprio povo.
Aquele grupo autóctone achou um jeito de driblar um monte de deuses desgastados que não funcionavam, nem para um lado, nem para o outro. Todo mundo na época já sabia disso, pois era uma mentira de polichinelo mais do que sem vergonha, desgastada há séculos e, então, resolveram firmar a ideia já meio conhecida de um deus supremo sem nenhum outro por perto, sozinho dando as cartas – soberano de verdade!... Mas com um detalhe: deveria ser uma história registrada num livro, sobre o povo escolhido pelo novo deus. Um povo que seguisse as regras divinas para receber, como recompensa, uma Terra Prometida cheia de privilégios e com todas as garantias.
Começava um grande negócio por ali. A invenção, formalizada e escrita, do monoteísmo. Um negócio que iria virar povo e nação, bastando um pouquinho de esforço. Tinha que se achar um nome para o deus, um motivo muito criativo que convencesse o povaréu da paternidade divina, que foi a ideia de raça eleita, e o mais difícil: enfiar na cabeça de todo mundo que aquele livro era sagrado! Embora essa ideia não seja minha, o momento da história antiga favoreceu tudo e a coisa está aí até hoje. Só não sei até quando...
Christopher Hitchens, na sua honestidade filosófica, nos deixou textos profundos e desafiadores: “Não é preciso dizer que nenhum dos acontecimentos medonhos e desordeiros no Êxodo jamais se deu. Os arqueólogos israelenses estão entre os mais profissionais do mundo, mesmo que seu estudo tenha sido algumas vezes infectado por um desejo de provar que o pacto entre Deus e Moisés teve algum fundamento. Nenhum grupo de escavadores ou acadêmicos trabalhou mais duro ou com maior expectativa que os israelenses que vasculharam as areias do Sinai e de Canaã. O primeiro deles foi Yigael Yadin, cujo trabalho mais conhecido foi realizado em Massada e que foi encarregado por David Ben-Gurion de desenterrar os ‘pequenos documentos’ que justificariam a reivindicação por Israel da Terra Prometida. Até bem pouco tempo, esses esforços evidentemente politizados tiveram alguma plausibilidade superficial. Depois, foi realizado um trabalho mais abrangente e objetivo, apresentado principalmente por Israel Finkelstein, do Instituto de Arqueologia da Universidade de Tel-Aviv, e seu colega Neil Asher Silberman. Esses homens consideravam a ‘Bíblia Hebraica’ bela, ou Pentateuco, e viam a história da moderna Israel como uma grande inspiração no que diz respeito a um humilde apelo à indiferença. Mas a conclusão deles é definitiva, e ainda mais confiável por colocar as provas acima do interesse pessoal. Não houve fuga do Egito, ninguém vagou pelo deserto (muito menos durante o inacreditável período de quatro décadas mencionado no Pentateuco), nem houve a conquista dramática da Terra Prometida. Tudo foi de forma incompetente inventado em uma época posterior. Também não há nenhuma crônica egípcia que mencione esse episódio, mesmo que de passagem, e o Egito foi a grande potência militar em Canaã e na região do Nilo em todas as épocas. Na verdade, boa parte das provas indica o contrário. A arqueologia confirma a presença de comunidades de hebreus na Palestina há milhares de anos. Devido à ausência de ossos de porco nos monturos e vazadouros, que mostra a existência de um modesto ‘reino de David’, pode-se deduzir tal coisa. Todos os mitos mosaicos, porém, podem ser fácil e seguramente descartados. Não acho que isso seja o que os críticos amargos da fé algumas vezes chamam de conclusão ‘reducionista’. É possível extrair um grande prazer do estudo da arqueologia e dos textos antigos, e também aprender muito. E isso sempre nos leva mais perto da verdade. Por outro lado, mais uma vez, é levantada a questão do antiteísmo. Em O futuro de uma ilusão, Freud destaca o ponto óbvio de que a religião sofria de uma deficiência incurável: era excessivamente fruto de nosso próprio desejo de fugir da morte ou sobreviver a ela. Essa crítica ao pensamento positivo é forte e irrespondível, mas ela na verdade não lida com os horrores, as crueldades e as loucuras do Velho Testamento. Quem, com exceção de um antigo sacerdote – tentando conseguir poder se valendo do recurso aprovado do medo –, poderia desejar que essa trama, lamentavelmente tecida de fábula, contivesse qualquer verdade?”.
A primeira tentativa honesta de sistematizar o conceito de monolatria foi a do faraó Akhenathon. Não deu certo e ele morreu frustrado. Mas o sol não era tão robusto e convincente para ser um deus, pois logo levantaria questionamentos de quem o teria criado. A bandalheira egípcia do politeísmo era bem mais interessante, mormente quanto às licenciosidades aceitas. Ninguém quer nada certo... Basta refletir um pouco sobre o turbilhão de santos, que nada mais são do que deuses menores que povoam o mundo católico. Isso não é politeísmo? É henoteísmo? É incompetência de Deus para justificar tantos assistentes? O que significa isso? Veneração de ossos ou de fantasmas? Deus com anemia.
Dizem certos teólogos[10] biblistas que o patriarca dos judeus, Abrahão, teria existido em torno de 1800 a.C. e que seu herói Moisés, teria libertado aquela turba de escravos do Egito por volta de 1250 a.C., tudo engendrado na aleatoriedade antiga pelos interessados em inventar uma história de judeus. Só que esses contos não contêm nenhuma base histórica documentada na Antiguidade, a não ser no texto da própria Torah e, diga-se de passagem, começou a ser compilado no reinado do insignificante rei Josias, início do século VII a.C.! Aliás, abram-se de novo as bocas e pasmem: o Gênesis só foi escrito nessa época! E por quê? Simplesmente, porque os hebreus antigos não sabiam que tipo de enganação poderia ser aplicado naquele povo ignorante. Então, sobre o tema do primeiro homem surgido aqui na Terra, com as suas concupiscências, implantaram o terror pecaminoso teocrático, justificado pela elaboração de uma poderosa cartilha de conduta social. Por fim, inventaram uma historinha bem colorida para aqueles hebreus de pouca massa encefálica. Para a época, até que foi brilhante. Aliás, foi mesmo nesse século VII a.C. que a Bíblia começou a ser escrita efetivamente. Antes, eram somente tradições orais – telefone sem fio, coisa e tal...
Aqui neste livro não há antissemitismo, aliás, não estou nem um pouco preocupado com o judaísmo fora do contexto do constructo dogmático que este livro aborda. Acho a Torah admissível como um relato histórico convencionado, mas deplorável como proposta de perpetuação de uma teocracia inteiramente mofada por tantos séculos. Tristemente bolorenta.
Os mais expressivos biblistas da atualidade confirmam isso: Israel Finkelstein, Ze’ev Herzog, Navad Na’aman, todos luminares da Escola de Tel-aviv. Judeus que resolveram abrir a boca, contar a verdade ao mundo, pois não dá mais para engolir as baboseiras teológicas e tradições proto-históricas do jeovismo.
Segundo o próprio mestre Israel Filkenstein, na sua obra prima A Bíblia desvelada, o rei Josias de Judá, pretendendo unir os reinos do Norte e do Sul, deu o golpe político e inventou a Torah. Acreditou que com isso daria origem a uma “nação”, mesmo sem saber o que significava o etymon da palavra, que só viria a existir muito depois. Mas do resultado político ele conhecia muito bem: o que importava era unir gente em torno de alguma coisa. Então, os parvos moradores de Judá e os refugiados de Israel adotaram como moda a troca de cópias da Torah, cheias de historinhas do “arco da velha” que funcionam até hoje... Constantino, séculos mais tarde, vendo a divisão do Império Romano com o seu esfacelamento, porventura não encaminhou as coisas para que o cristianismo deixasse de ser perseguido e se tornasse a religião oficial do Estado? Ele estabilizou o império, fortaleceu a família e ainda canonizou a mãe.
O mundo está num processo muito rápido de descobrimento das verdades camufladas pela religião ao longo da história, que antes não preocupavam o ser humano. Hoje, ninguém aceita mais o embuste fácil. O enredamento teológico, que dava sustentação ao poder, perdeu as roupas íntimas – ficou nu e desmascarado. A cada dia, as pecinhas do engodo religioso são desmontadas pelas vias da razão pura.
Numa reação inútil, as religiões embarcam num mega esforço desesperado para oferecer novidades ao povo. Um self-service de iguarias espirituais, ficando cada vez mais desacreditadas, ridículas e sob a falsa alegação de que a fé não precisa de compreensão... Inventam todo tipo de movimento com disfarces fúteis para atrair os jovens, impedindo-os de pensar e, ao mesmo tempo, ao subjugar os velhos, usam a conhecida covardia emotiva.
Espero honestamente que meus leitores percebam o quanto fomos manipulados pela fide e que as escrituras não passam de meros barbantes de marionetes. Meus caros leitores, eu mesmo já acreditei mais nas palavras da Bíblia do que nas minhas próprias, como um autêntico fundamentalista, hoje tenho a absoluta certeza de que esses barbantes, que faziam de mim um títere da Igreja, esgarçaram-se bem depressa em meu favor.
Pior do que a torre de Babel: os tijolos de uma obra gigantesca de séculos deterioram-se rapidamente no presente século. Essa obra é o imenso edifício da fé judaico-cristã, através do Livro, que passou a ser visto por todos como questionável repentinamente. Os teólogos e sacerdotes do mundo inteiro sofrem hoje de cólicas atrozes, empalidecidos, com o pavor de que o edifício desmorone por completo, trazendo-lhes o desemprego em massa... O que seria da religião do livro sem o Livro, e do sacerdote sem dinheiro?
Segundo Louis Frédéric[11], no que concerne à Palestina, os testemunhos mais antigos até hoje encontrados de uma indústria humana, pertencem ao Paleolítico inferior e, portanto, situam-se entre 250 mil e 50 mil anos. Os mais antigos vestígios humanos, encontrados nas grutas do Monte Carmelo estão em torno de 140 mil anos. Isso é o que prova a ciência: uma “pequena” diferença na datação bíblica dos sete mil anos e da criação de Adão... Às vezes me arrependo de ainda escrever sobre baboseiras.
Aqueles pequenos reis de Israel adotaram um critério diferente para a consubstanciação de um povo eleito por Deus, que foi a ideia de institucionalizar a fé, permeando as suas monarquias. O sacerdote era a mola mestra desse sistema para construir o que é hoje um passado fictício. Todo israelense tem absoluta certeza, como uma ideia fixa inoculada no cerebelo, de que o seu povo foi eleito por Deus desde o momento da criação das leis no Sinai e assume convicto que é descendente direto daqueles nômades do deserto, separados por Deus para herdarem a Terra Prometida. Se voltarmos ao tema dos desvios cognitivos, teremos em mente que a crença só se processa de uma forma: um mergulho profundo numa ideia obstinada. Isto se chama fé.
Shlomo Sand[12], judeu que não se cala, disse que “Em Israel, esse amontoado de memória não se constituiu espontaneamente. Foi acumulado, estrato por estrato, a partir da segunda metade do século dezenove, por talentosos reconstrutores do passado que juntaram pedaços de memória religiosa judaica e cristã, na base dos quais sua imaginação fértil inventou um encadeamento genealógico contínuo para o povo judeu”.
Em contraposto às bobagens religiosas de antanho, surgem grandes mestres do pensamento a cada dia, impondo sua visão mais e mais audaciosa, para desmitificar o conceito de nação escolhida. Dignas de menção são obras como Estado judeu ou nação israelita?, de Boaz Evron; A historiografia sionista e a invenção da nação judaico-moderna, do professor Uri Ram e A invenção do povo judeu, de Shlomo Sand, a maior autoridade no mundo atual sobre as manobras religiosas e políticas da origem do povo judeu. E os judeus começaram a tremer ultimamente.
Esses novos filósofos judeus muito têm abalado as colunas fincadas desde os tempos em que a Torah, o Velho Testamento, foi inventado. E quanto aos velhos heróis? Será que realmente existiram? Se a resposta for sim, quando e onde? A Bíblia só fala deles de uma forma heteróclita, confusa e pouco crível à luz da historiografia dos outros povos. Um personagem, Abrahão, teria vivido 1800 anos antes de Cristo e outro, 1250 anos antes do mesmo Cristo. Quem estabeleceu isso? Os hábeis construtores das escrituras, certamente.
Não há nenhum documento sobre esses personagens hebreus nos anais egípcios conhecidos. Tampouco, há relatos sobre as pragas supostamente mandadas por Yahweh, registrados na história de outros povos. Coisas como a água do rio Nilo ter sido transformada em sangue... Pragas de mosquitos, rãs, rebanhos mortos, moscas, granizo, peste, invasão de gafanhotos, escuridão do céu e morte dos primogênitos... Como acatar tais fatos registrados pelos hebreus primitivos do deserto, nitidamente com segundas intenções? Intenções de formatar um “povo eleito” por Deus. Semelhantes em tudo aos outros povos, mas que cometiam os mesmos erros, com os mesmos vícios da natureza humana daqueles que eram considerados ímpios. Há um mínimo de lógica nisso?
No século vinte, surgem superproduções fílmicas, com mais de seiscentas mil famílias destrambelhadas, fugindo da perseguição do faraó pelo deserto... Mas a população egípcia da época, estimada pelos arqueólogos, estaria na casa dos três milhões de habitantes. Às margens do Mar Vermelho, que na realidade era o canal de Suez, as águas levam uma cajadada miraculosa e todo o pessoal atravessa pelo fundo do mar na maior tranquilidade. Só que com montanhas de corais, rochedos, areia atolante; enquanto as pesadas bigas egípcias e centenas de soldados bem armados representaram um papel ridículo de estratégia militar, morrendo afogados. Tal fato deve ter encantado os participantes da expedição hebreia da época e, com certeza, aos bem posteriores cinéfilos, expectadores dos Dez mandamentos de Cecil B. DeMille, em 1956... Quando assisti ao filme ainda criança, confesso que fiquei impressionado com o “poder de Deus” e a teimosia de Yull Brynner, o Ramsés II. E essas coisas são plantadas na mente das crianças e permanecem até por uma vida inteira.
Thomas Paine[13] foi terrivelmente perseguido pelos jacobinos franceses, simplesmente, porque sustentou a verdade sobre o fato de que Moisés jamais escrevera o Pentateuco. Para piorar, disse que foi escrito séculos depois, por vários embusteiros idiotas e mal-intencionados. Assim como hoje, outros falsários escrevem histórias que, supostamente, aconteceram num passado distante e continuam a alimentar fantasias para os tolos.
O Gênesis, livro da lenda da criação, só foi acrescentado aos livros históricos do Pentateuco muito mais tarde e foi o último a ser juntado à Torah. Durante séculos, os hebreus cobravam aos líderes religiosos explicações sobre a criação do mundo e do homem. Ora, não tiveram mais como enganar o povaréu. O início do mundo e da vida parecia tão distante para eles, que seria inviável continuar a manter a embromação das tradições orais através de gerações. Então, os inventores de fábulas, mais velhacos nessa arte, apoiaram-se em tradições impossíveis de constatação, pois estavam sedimentadas na mente do hebreu primitivo.
Aqueles líderes dolosos da época agiam exatamente como os de hoje: usando o duplo sentido das coisas e a introjeção do medo, com o consequente retorno da culpa, tão necessária à submissão ao “livro sagrado”. Os hebreus antigos conheciam a estratégia de aplicação dos desvios cognitivos para plantar crenças fortes que impressionaram o próprio Freud em pleno século vinte...
As peregrinações de Abrahão e da sua família são fábulas engendradas com imagens fortíssimas para a imaginação, haja vista o quase assassinato de Isaac com o cutelo do pai e isso determinado por um ser benevolente... Mesmo que isso não fosse lenda, poderia um deus destruir o íntimo e toda a estabilidade emocional de um pai, preparando-o para matar seu filho? Nos dias que correm, Abrahão seria intimado pela Justiça e julgado por desestabilizar a psiqué de uma criança. Talvez condenado a voltar para o deserto.
Os redatores da Bíblia fizeram de Abrahão um herói e grande chefe militar. Sem heróis nada se faz e, sem mitos, muito menos. Assim, também foi com Moisés e outros mitos da Bíblia, até chegar aos heróis de hoje. Enquanto não corrigirmos nossos desvios cognitivos para reaprendermos a pensar, só existirão ilusões, que transmitiremos aos nossos filhos inocentes.
Descobriu-se uma pedra de toque no passado: a cultura de fé intocável, por convenção rabínica oculta. Surgiu uma arquitetura de esperteza para construir um povo-raça-estrangeiro, que descambou no absurdo do “gene judaico”. Ora, etnia é definida por um grupo de indivíduos com língua, religião e maneira de agir comuns, idiossincrásicos por semelhança. Raça já classifica os grupos humanos pelos seus traços físicos hereditários, onde implica a questão sanguínea. Como comprovar isso na Antiguidade?
Os antigos hebreus tiveram um devaneio identitário, misturado ao ethnos nacionalista, provenientes das lendas deterministas criadas sobre o deus do monoteísmo, ou melhor, do deus nacionalista do Sinai, quando sequer existia a ideia de nação... Aliás, os próprios judeus modernos têm variegado o conceito mais purista de nação, travestindo-o de citações obscuras e desviantes contidas na Torah. Empregam a própria palavra Am (povo) com um cunho religioso exacerbado, ao referenciar tal vocábulo como unidade indivisível e com respaldo ideológico. Qual o povo sobre a terra que possui uma unidade indivisível? A verdade é que vemos o judaísmo de jeito tendencioso, com vistas à perpetuação de um nacionalismo fideísta, embasado numa ideia de “raça eleita”. E esta ideia tende a se diluir pelos novos judeus indiferentes às tradições.
A maior ameaça recente aos judeus não foi Hitler, com o seu objetivo de arrasar o Estado judeu no seu projeto filosófico e conceitual, que abriga as falsas características judaico-biológicas específicas. A maior, única e letal ameaça hoje é o desgaste da ideia do deus monoteísta, vinculado a um livro desacreditado. Esse Livro tende a ser desconstruído com rapidez através do método histórico-crítico daqui para frente. A desconstrução final ocorrerá quando o senso comum compreender o processo de visão crítico-metodológico, que pode derrubar o mito de séculos.
O sentido de “povo”, pelo que entendo, são grupos humanos que permanecem dentro de fronteiras identitárias, mesmo variadas e imprecisas, até, mais tarde, chegarem a linhas demarcatórias mais definidas entre os grandes grupos linguísticos. Mas o fio condutor judaizante não se restringe à definição acima – o Livro teve o seu papel, reforçando um fim religioso. Não no sentido imposto por influências judaizantes seculares, mas a concentração da fé na Torah, institucionalizada, para blindar o Estado judeu. Uma forma de metaidentidade, sustentada pelo tempo de existência de uma fé incutida sobre múltiplas gerações. Um ethnos alimentado por uma ambiguidade de fé-má-fé, forjada com fins políticos.
Para Anthony Smith, “Um grupo étnico se distingue por quatro pontos característicos: o sentimento de uma origem comum ao grupo; a consciência de uma história única com a crença em um destino comum; a presença de um ou de vários traços culturais coletivos – específicos e, enfim, o sentimento de uma solidariedade coletiva única”.
Além da presunção de etnorreligiosidade, considera-se certa pretensão etnobiológica dos judeus. Porque, na verdade, “povo” é um grupo humano que vive num determinado espaço geográfico, ao deter características que ressaltam normas e práticas culturais comuns. Essas normas se definem pela linguagem, indumentária, práticas habitacionais, de lazer e de alimentação, correlacionadas.
Religiões de per si não constituem nações, porque nenhuma religião possui um território comum cujos membros sentem e decidem que são os possuidores exclusivos daquele território. Entretanto, as coisas não acontecem dessa maneira.
O nascimento de uma nação é um autêntico processo histórico, sem que seja um fenômeno espontâneo. Mas, com toda certeza, um livro de fábulas santificadas não tem meios para definir uma metaconsciência, através de um conjunto de normas religiosas, que tentam concretizar uma ideologia unificadora como doutrina nacional. A consciência nacional é que dá origem à nação e não o oposto, porém jamais baseada num livro ausente de historicidade e destinado a formar mitos em torno do governo. Nesse caso, não seria apenas um governo teocrático, mas (o que ocorreu) uma nação-jeovista altamente questionável.
A construção da nação moderna é concomitante à consolidação do pensamento nacional e nisso concorrem múltiplos elementos culturais. Jamais um livro heteróclito de fábulas e absurdidades morais pode impor dogmas. Livro tem que ser discutido!
As democracias amadurecidas foram as que se libertaram totalmente dos mitos etnocêntricos antigos. Somente as tendências judaizantes ainda hoje flutuam nessa pequena boia salva-vidas, com a contumácia de postergar “uma identidade ancestral de continuidade genealógica”, impondo ao mundo um fundamento biológico e uma concepção equívoca de “povo-raça” eleito. Deus é inventado com as características dos sentimentos humanos, pois não tiveram a capacidade de des-corporificá-lo. Por fim, um povo é inventado para, despudoradamente, afirmar-se eleito por um fantasma do deserto do Sinai.
A grande força na construção da ideia de “povo-raça” eleito se deu pela árdua elaboração textual de uma genealogia gigantesca, ao se recuar o máximo possível no tempo para que o nacionalismo ficasse mais robustecido com a história dos heróis antigos. Eles apostaram que a mitologia, junto dos seus heróis, é que forma os elementos necessários para a ativação do sentimento nacionalista, calcado nos mistérios, mormente advindos do cume do Monte Sinai. Porque, simplesmente, teria nascido naquele lugar o conceito de povo separado para marchar através de um deserto como nação.
Ficou claro, há séculos, que o povo judeu teme e treme diante da ameaça, para eles assustadora, que paira sobre a Torah: o descrédito gradual do povo. Quando as luzes do século dezenove se apagavam, Simon Doubnov, pesquisador judeu, declarou com tom de desespero: “Se nós queremos preservar o judaísmo como nação cultural e histórica, não devemos nos esquecer de que a religião judaica é um dos fundamentos mais importantes de nossa cultura nacional e que eliminá-la significaria abalar dessa forma esse fundamento da nossa existência”.
Doubnov, como todo judeu, insiste na “cultura da nação” laica, no “povo-mundo”, “povo-raça” eleito... Mas nenhuma nação pode abrigar um duplo nacionalismo, a menos que seja pela via do artifício religioso. Artifício inclusive que ele aplicou ao Gênesis, propondo ressaltar do seu conteúdo alguns aspectos próximos da realidade e que o mais ficasse apenas como metáfora... Esperto, não? Escamotear a história para embasar a “nação eleita” com metáforas que pudessem engrossar o nacionalismo para erigir colunas políticas. Metáforas milenares, simbolismos. Bem, foi uma tentativa mais atual. Ele pretendia colocar um véu sobre os relatos imaginários para concentrar a atenção no “núcleo histórico” da Torah, embora paupérrimo.
A lenda é adornada pela tradição popular que, por sua vez, sobre a esteira da genealogia, adquire um “quê” de solidez política e de inquestionabilidade espiritual. É o trabalho de dois milênios que martela a mesma alternativa! O tal de Abrahão parece que toma café conosco, é íntimo. A tal figura de Moisés também, afinal de contas, tirou nossos antepassados das garras de um faraó politeísta e vilão. É Yahweh quem nos garante. Está escrito, não se discute isso desde o início, por ser um costume de alta confiança. O judeu repete a mesma coisa, dia após dia.
Desse jeito genealógico, empilhando os sonhos dos antigos, os relatos se validam “cientificamente”. Como? Com o suporte das artimanhas dos arqueólogos embusteiros, geógrafos oportunistas, historiadores venais e filólogos trapaceiros de tempos idos... A arqueologia da Palestina é muito pobre, se comparada a da Grécia, do Egito ou da Mesopotâmia. Por isso, ficou mais fácil para o povo acreditar que Deus escrevera e inspirara o Livro da religião judeocristã. Assim sendo, fomos de um “livro santo” preparar o arcabouço de uma nação sui generis: eleita por quem criou todas as outras nações e decidiu premiar o judaísmo como “povo-mundo”. O que fazer? Engole-se a bola, como no século XIX, ou Israel que se cuide com o novo mundo!
Daqui para frente, problema escabroso que os devotos do mundo judaico vão enfrentar se resume nesta interrogativa: como sustentar a “veracidade histórico-positivista” da Torah e tentar mantê-la como verdade nacional, diante da evolução do método histórico-crítico? A resposta é o cúmulo do cinismo teológico empregado nos dias de hoje.
Recentemente, a título de distrair os olhares das embolações lendárias de milênios, criaram um festival nacional arqueológico em Israel, com desdobramentos de paralelos imaginários, uma tentativa de reforçar o que já nasceu fraco...
Segundo Shlomo Sand, “Na época da suposta saída do Egito, Canaã estava sob o controle dos faraós, ainda todo-poderosos. Moisés teria, então, conduzido os escravos libertos do Egito ao... Egito! Se nos basearmos na Bíblia, ele teria guiado no deserto 600 mil combatentes, que devem ter viajado com mulher e filhos, dando no total quase três milhões de pessoas! Além de ser impossível que uma população dessa grandeza pudesse deixar seu local de residência e errar no deserto durante tanto tempo, tal acontecimento deveria ter deixado alguns rastros epigráficos ou arqueológicos. No reino do Egito era costume mencionar cada fato com grande precisão. A prova é que possuímos inúmeros documentos sobre a vida política e militar do Egito. Conhecemos inclusive a incursão de grupos de pastores nômades nas terras do reino. O problema é que não se encontrou nenhuma referência ou alusão a ‘filhos de Israel’ que pudessem ter vivido ali, revoltando-se ou saindo de lá em alguma época. A cidade de Pitom, citada na Bíblia, surge em uma fonte externa precoce, mas ela só se torna uma localidade importante no final do século VII a.C. Até hoje, não se encontraram no deserto do Sinai vestígios como testemunho da passagem de qualquer população grande no período suposto. Etzion Geber e Arad, evocados no relato da expedição nômade não existiam naquele período e só surgiram como localidades permanentes e florescentes muito mais tarde... Curioso é que até a famosa conquista de Canaã é um dos mitos totalmente refutados pela nova arqueologia”!
Ainda diz Shlomo Sand, o professor judeu da Universidade de Tel-aviv, sobre o Templo de Salomão: “O desenvolvimento da tecnologia de datação pelo carbono 14 confirmou a dolorosa conclusão: a colossal construção da região norte não foi edificada por Salomão, mas no período do reino do Norte de Israel. De fato, não existe nenhum vestígio da existência desse rei lendário, cuja riqueza a Bíblia descreve em termos que quase se igualam aos poderosos reis da Babilônia ou da Pérsia”. Chegamos aqui, no livro, desmantelando o que não gostaríamos – mas é a História.
É sempre assim: o homem finge acreditar nas historias religiosas para não ser abalado nas suas ilusões últimas, pois é necessária a sensação de ser feliz. Com o instinto de rebanho, no domingo muitos vão à praia, mesmo junto daqueles que criticam. Às vezes, entram em luta corporal. O vizinho que estava na barraca ao lado olha para a mulher do outro e pronto!... Vamos até o shopping, andamos como primatas e, às vezes, criamos problemas com qualquer pessoa – não importa quem. Sempre seguimos outros mamíferos como nós. Vamos ao clube como vício. Vamos à igreja e procuramos um pastor, ou um padre, pois precisamos ser liderados. Temos necessidade de falar com alguém invisível e achar que somos ouvidos... Temos instinto de veneração. Incompletos é o que somos. Insatisfeitos. Resignados nefelibatas, pois deslizamos em sonhos transcendentais... O fato é que a nossa origem, lá pelos australophitecus, não combinou com a evolução do cérebro e, desta feita, não deu certo. Ficamos inviáveis.
Muito bem, de volta aos judeus: alegações excepcionais exigem provas excepcionais. Que haja, então, a inversão do ônus da prova: são os judaenses que têm que provar, e não nós, que eles são o “povo-nação” eleita. Essa hipotética, ou melhor, mitológica aliança entre Deus e Abrahão – busca biológica desesperada por uma raça judaica –, o gene-judeo. A loucura de admitirem, em última instância que, mesmo não existindo uma raça pura, poderia haver uma entidade biológica compacta para manter as aparências...
Jacob Zess declarou que “temos mais do que outros povos, necessidade de higiene da raça”. Essas declarações, que abrangem vários campos da ciência, sustentam um racismo pseudocientífico, chegam às afirmações de uma raça antiga e impenetrável que teria uma origem única. Um dos caminhos adotados pelos antigos hebreus foi, desde o início, o casamento endogâmico, execração dos casamentos mistos, que nada mais é do que uma nódoa que protege o povo judaense. Por trás dos bastidores, no oculto da sociedade aberta, aqueles que “quebram a Lei” são deixados para trás, pois a teoria judaica do sangue é o que pode dar manutenção a essa própria lei, a ração balanceada do mito da raça judaica, essa identidade etnobiológica fictícia e astuta! Acho que meus leitores não esperavam por isso.
Existe uma ideia sionista hoje, mais forte do que nunca, de um povo-raça judeu, aramada por uma pseudogenética judaica, através de trabalhos publicados nas mais conhecidas revistas científicas, mas de reputação duvidosa. Por isso é que bato e rebato: já começa o desgaste étnico final. Nada há mais para sustentar nesse campo da biologia, pois lá, bem por trás de tudo, eles vão puxar a Torah do bolso, na tentativa de confirmar uma raça oriunda da mistura mesopotâmica, que recebeu a sagração no Sinai... No final desse tremendo esforço probatório de raça-pura judaense, não se pode classificar um judeu através de critérios biológicos, quaisquer que sejam eles. Isto nasceu de um folclore religioso, que começou com Abrahão no deserto e não parou mais.
O casamento intracomunitário pretende sustentar o purismo racial e foi algo que também fracassou. Os evangélicos, que são copistas astutos de muitos conceitos judaicos, tentaram também esse pastiche e ainda ficou mais ridículo do que com os antigos judaenses. Ameaçam seus fiéis até hoje com o perigo do “jugo desigual”, dos casamentos mistos. Os evangélicos copiaram, mas faltou a criatividade judaica. Os protestantes, em parte, são de natureza intelectual acanhada, de pobreza criativa sem limites e surgiram mais de dois mil anos depois dos judeus. Mas souberam plagiar deles um monte de baboseiras doutrinárias...
Como resultado das lutas travadas pela tenacidade judaense, muitos judeus se fixaram em países como a Holanda, Polônia, França, Alemanha e Inglaterra. Israelitas com dupla nacionalidade, muitas vezes têm enaltecido os países de nascimento, com a mesma intensidade da sua “nacionalidade” judaica, porque a política identitária de Israel tem imposto essa ideologia. É uma cultura de elaboração do “povo-mundo”, que parece ser admitida com indiferença pelos outros povos.
Um imaginário étnico-racial-intocável, porque é sagrado e pronto. É como o papa, a massa não discute sua autoridade de representante de Deus... Mas ninguém contesta nada. Então que se questionem essas “verdades” assentadas! Como a nação que foi errante desde o começo, execrada e, vale dizer, completamente imaginada. Sustentada por um livro! Um imaginário histórico alimentado no coração dos judeus, onde o exílio, que jamais existiu da maneira contada (todas as diásporas foram forjadas), por isso, nunca houve provas substanciais para a tese do exílio. A ideia do exílio serviu como perfeito elemento de chantagem emocional, apoiada na Antiguidade das suas fontes etnofictícias. Era vital no coração, por força de lavagem cerebral, pertencer à “semente de Abrahão, Isaac e Jacob”. Sem certeza cega, não há judaísmo que seja mantido somente através da armadura “étnica” e racial. Não há como levar esta montagem do palco por muito longe.
O “mito-história” não pode ser posto em dúvida, senão o edifício desmorona, pela inquestionável sacralidade que virou fóssil com o tempo – cristalizou-se. Ou então você não é filho de Israel e, tampouco, pertence ao time seleto de Yahweh, pois, para isso, foi inventada a categoria de Israel como um povo-sagrado eleito. Pensemos com lógica: de um bando de boçais, analfabetos, tarados sexuais, pedófilos, ladrões da Antiguidade, nasceram historinhas que viraram tradição, ficaram sagradas e registradas num livro.
Essa história idiota de criar um conceito de “nação” baseado no pertencimento a qualquer tipo de coletividade faria dos católicos uma nação e dos colecionadores de selos também... Ora, um ethnos biológico não pode ser estabelecido só com a remoção do prepúcio de um bebê.
A construção do livro e seus cânones fatais
Os redatores da Torah de fato se preocupavam em zelar pelo povo, dando-lhes torrentes de sabedoria hebraica. Pretendiam que o povo alcançasse uma vida plena de alegrias, mas isso só seria possível através da fuga da idolatria.
Na visão judaica clássica do sofrimento, a conduta iníqua produziria para o povo um sofrimento perpétuo. Portanto, pecou, pagou. Havia o perdão, em meio a uma série de complicações restauracionistas e sacrificiais para os hebreus. Sobrevinha-lhes a complacência divina de quando em quando, mas castigos também faziam parte do cardápio, de acordo com o mau-humor divino... O imprevisível em Yahweh era chocante: a exata correspondência de atitude no ser humano. Fica, portanto, o triste aforismo: “E o homem criou Deus a sua imagem e semelhança”...
Os profetas, assim, mantinham o povo debaixo da instabilidade e do medo, através da visão clássica do sofrimento. A má sorte, a doença e os demais infortúnios, eram decorrentes da impiedade do homem. A desobediência era o ponto nevrálgico. Lógico! Por isso, foi redigido um livro de regras ditadas pelo todo-poderoso. Mas arrazoemos como cidadãos honestos e até com uma pitada de equanimidade: o que é melhor para o ser humano, a libertinagem do politeísmo, com as nuances de devassidão, ou a restrição monoteísta às concupiscências? Não é um aspecto de fácil análise. Em minha opinião, sou partidário das restrições monoteístas, pois o resultado final é de muito mais sabedoria para a sobrevivência, longevidade e enlevo espiritual dos humanos. Se fosse simples assim, o monoteísmo seria a melhor solução, só que veio com ele a dogmática, que falsificou o que poderia dar certo.
Então, um casal de irresponsáveis é inventado para dar início ao gênero homo, há seis mil anos. Ora, há milênios, até que soava bem essa história de sete mil anos, um tanto romântico e crível. Mas hoje, como sabemos que a proposta ficou ridícula, por que fugirmos de discussões sobre esse espaço de tempo tão curto para a história do mundo? Pior ainda, por que passamos a reputá-lo de metafórico como desculpa esfarrapada? Porque sabemos que a ciência, em nenhum dos seus ramos, se ocupa de bobagens. Muito menos a filosofia do hoje, pois a religião já esgotou os seus meios e parece que não vai sobreviver ao século XXI, pesado de novidades e informações.
Existe um festival de lendas, mitos e baboseiras na história dos hebreus. Mas existem também histórias paralelas sobre grandes enchentes que destruíram povos agrícolas vizinhos dos hebreus. Outras mitologias. Assim, é fácil percebermos a concomitância das situações, como essas semelhantes ao dilúvio de Noé, pois os povos registravam suas lendas como verdades. Os acontecimentos são os mesmos, só mudam as doutrinas... Sobre essas técnicas e farsalhões eclesiásticos, tratei no meu livro A indústria da fé, onde desnudo os abutres do púlpito que usurpam a dignidade do povo crédulo, sempre utilizando mitologias de boteco para emocionar.
Seus autores são os monstros profissionais dos púlpitos, que ficaram ricos à custa dos ingênuos que povoam as igrejas. Aliás, toda igreja local se divide em três blocos: os ingênuos recuperáveis, os irrecuperáveis e os vampiros da fé. Mas o presente trabalho se volta com um foco mais preciso para o Livro canonizado. A religião do livro e suas múltiplas contradições.
Então, veja-se que exemplo curioso e conveniente: Moisés diz no Livro que “Se obedeceres de fato a lei do Senhor teu Deus, cuidando de pôr em prática todos os seus mandamentos que eu hoje te ordeno, o Senhor teu Deus te fará superior a todas as nações da terra. Estas são as bênçãos que virão sobre ti e te atingirão. Bendito serás tu na cidade, e bendito serás tu no campo! Bendito será o fruto do teu ventre, o fruto do teu solo, o fruto dos teus animais, a cria das tuas vacas e a prole das tuas ovelhas! Bendito será o teu cesto e a tua amassadeira! Bendito serás tu ao entrares e bendito serás ao saíres!”[14].
Mas e se outros povos vizinhos ou distantes, que não hebreus, quisessem seguir um bom caminho, simplificar tudo nas questões da Lei: buscar a paz, o amor e as outras coisas que conduzem à boa moral e convívio pacífico com o próximo? Não poderiam. Não seria possível, pois teriam que pertencer ao “povo-raça” eleito e, ainda por cima, extirpar o prepúcio.
Agora, veja-se: monstros da indústria da fé do nosso século (pastores que preservaram os seus prepúcios) criaram a “teologia da prosperidade”. Baseados em centenas de passagens bíblicas, como essa de Moisés, prometem aos idiotas coletivos do século vinte e um a multiplicação dos bens materiais; o paraíso, sem, ao menos, pertencerem à “raça” judaica. Na Antiguidade, o povo hebreu se preocupava em adorar a Deus corretamente. Atualmente, a massa de cristãos preocupa-se em conquistar a prosperidade...
A mentira chegou a público. Descobriram o que acontece nos seminários. Lembremo-nos que, desde crianças, ouvimos por várias vezes alguns adultos comentarem: “Não acredito que os padres, tão estudiosos, não saibam que a religião é uma mentira...”.
Mas, nos dias de hoje, os seminários, as faculdades teológicas, nem diria as mais liberais, mas as efetivamente inseridas no contexto pedagógico atual, expõem em uma bandeja a realidade terrível da religião através da história. Contam como seus livros foram construídos a partir das cópias de manuscritos antigos forjados e a canonização desses mesmos livros. Expõem, também, a distância entre a visão devocional e a metodologia científica, na formação do profissional da fé. Esse é o método histórico-crítico.
Milhares de estudantes, quando frequentam esse tipo de instituição, empalidecem diante das verdades inesperadas, desestabilizam-se por completo, pois não estão prontos para enfrentar um cenário tão “diabólico”... Às vezes, abandonam os estudos que, equivocados, decidiram seguir. Alguns abandonam tudo: fé, igreja e Deus. Perdem-se no deserto ou se encontram nele. Outros se voltam para a vida estritamente devocional das igrejas, que mantêm a fantasia-modelo alienante dos séculos passados, esquecem o que aprenderam na faculdade de teologia e adotam o princípio do “pior cego é o que não quer ver”. Já os determinados – por saberem o que querem, entendem que tudo é consumo e a fé não foge à regra –, concluem a graduação. Depois, ingressam no promissor mercado de iludir as almas, para tomar conta do corpo das ovelhinhas... É evidente que muitos desses profissionais, queremos crer, nunca deixam de lado as suas boas intenções de servir à humanidade.
As faculdades de teologia que pretendem conduzir a grade curricular compatível com a metodologia de ensino aplicada às instituições de ensino seculares têm que se enquadrar, de forma aproximada, a um approach científico. Por essa razão, as instituições teológicas citadas não mantêm compromisso com qualquer tipo de devoção e acabam chocando os estudantes mais ingênuos.
Essas instituições, entretanto, pela sua natureza, jamais perderão o status acanhado de conhecimento, pelas tentativas de usar a ciência com a finalidade de firmar o improvável, se comparadas às instituições de outras áreas não teológicas. De que adianta correr contra o vento? Teologia é algo que jamais poderá pertencer ao universo científico, embora force todas as portas para tomar posse dos instrumentos da cientificidade na busca sôfrega pela sua própria produção de “provas”. Teologia é puro artesanato mal costurado de retalhos, em que concorrem várias matérias, como homilética, oratória, teologia sistemática, línguas antigas e outros adereços para “ajudar” o homem no ponto em que a ciência ainda não conseguiu dar suas respostas. Mas no curso da história, as respostas surgirão como consequência natural.
Mas, por citar a História, felizmente, essas instituições de ensino teológico já adotam o método histórico-crítico nos seus currículos mofados. Isso marca uma nova era no ensino da teologia e cria grandes mudanças até o esvaziamento final. Sim, porque a Bíblia passa a sofrer outro tipo de leitura, metodológica. De uma abordagem de leitura vertical, isto é, corrida, sequencial, ela toma outro aspecto: a leitura horizontal – a análise por equivalência e a comparação temática. Tome-se, como exemplo, um mesmo tema tratado estilisticamente, de forma histórica, num evangelho. Compare-se, em termos de construção frasal e cronológica em outro evangelho, isto denota sérias discrepâncias. O inesperado acontece: as vexatórias descobertas da religião do Livro, inquestionáveis até então, abalaram os santos já aposentados que, sem rumo, entraram em completo desespero...
Novas perguntas surgiram: “Quem escreveu a Bíblia e como? Em que época cada livro foi escrito? De que forma? E certas histórias que, a cada dia, se tornam mais estranhas, ridículas e incríveis? A historinha do dilúvio? Quais os verdadeiros autores da Bíblia? Qual a razão de tantas coisas desconexas, confusas e contraditórias? E quanto aos textos pseudoepigrafados? Moisés de fato existiu? E o Moisés histórico? A própria história do Egito e da Mesopotâmia nada registra sobre a fuga do povo hebreu, nem praga alguma teria ocorrido. Onde estão os relatos? Tampouco, o Abrahão histórico existiu. Será que é forte demais mencionarmos o Jesus histórico? A arqueologia nega o desabamento das muralhas de Jericó. E Josué, existiu também? Que fontes os autores da Bíblia utilizaram, já que eram analfabetos? Que história é essa de registros históricos feitos décadas e até séculos depois dos supostos fatos terem acontecido? Tudo a partir de tradições orais? De boatos? E as centenas de constatações de textos adulterados? E as trinta mil variações de textos contraditórios encontrados por John Mill? E o pior de tudo: onde estão os originais da Bíblia? Não existem originais da Bíblia, mas sim cópias apresentadas como originais. O que existem são cópias das cópias, das cópias, das cópias, das cópias, das cópias, até os dias de hoje”... Acredito que seja uma ideia desconcertante, não?
As pesquisas mais recentes da filologia, também da arqueologia, apresentam provas incontestáveis de que Mateus, Marcos, Lucas e João jamais escreveram os evangelhos que lhes são atribuídos. É triste para a maioria, mas há evidências em abundância que provam que tamanha coletânea de livros – biblos – jamais poderia ter sido ditada ou inspirada por Deus. Tal ser reuniria em si a perfeição absoluta, não deixaria “seus filhos” sem os originais diretamente das mãos dos próprios profetas ou discípulos e, muito menos, legaria ao ser humano, por mais rebelde, um livro tão cheio de contradições. São Jerônimo declarou ao traduzir a Vulgata: “Não pode existir verdade em coisas que divergem”. Foi um desabafo contra os desafetos do papa Dâmaso I, que lhe impusera a tradução da Bíblia para o latim a duras penas.
O lado infeliz dessa novela é que todo padre que se preze, também me refiro aos pastores com formação acadêmica, sabem disso até de cabeça para baixo. Aprenderam todas as deformações teológicas nos seminários e faculdades de Deus. Entretanto, depois de formados, em plena atividade ministerial, jamais transmitem essas verdades ao povo! É exatamente nesse tipo de conduta hipócrita que reside a maior prova do grau de profissionalismo aplicado na atividade pastoral. A defesa já é prévia, pois o emprego precisa ser mantido: “Para que tirar a ilusão do símplice, do humilde, do ingênuo?”. Exatamente para que ele fique cada vez mais ingênuo. É chegado, então, o melhor momento: o da antropofagia sacra. O desprezo à espiritualidade ingênua. O cerco ao óbolo da viúva. Por fim, à espera das presas mais opulentas que chegam distraídas para beber no regato.
Aquele que atravessou a existência, mas chegou à maturidade preservando a lucidez que a religião quase lhe decepara, porém carregando cicatrizes dolorosas, só tem uma lamentação: “Por que não vi isso antes?”. Quando se descobre, mesmo tardiamente, a fraude cativante da religião, as sequelas permanecem. Mas só atina para a fraude aquele que realmente mergulhou fundo nas coisas da fé e que foi honesto a cada degrau na busca do summum bonum[15]. Mas os que não se veem dessa forma enganam a si mesmos e tornam-se reféns do engodo eclesiástico.
Bem, a temida questão do método histórico-crítico. Não é algo que tenha surgido agora, pelo contrário, há quase dois séculos, existe uma aceitação consensual entre sacerdotes de que vários livros da Bíblia não foram escritos pelas mesmas pessoas de quem se espera a autoria declarada. É, ficaram quietos, sim. O método histórico-crítico assumiu uma importância avassaladora na atualidade, apenas pelo fato do questionamento e descrença cada vez maiores nas escrituras bíblicas, diante de um mundo em desconcertantes transformações.
Mas, então, quem escreveu os livros da Bíblia? Não importa quem os tenha redigido. Foi importante até agora manter os nomes que aí estão desde os tempos remotos. Sim, até agora. Doravante, não sei. Mas, mesmo que a Bíblia seja menos lida daqui para frente, os seus “autores” permanecerão fixados na mente do povo, porque não há outros para substituí-los. Os que iniciaram os relatos, as lambanças das tradições orais – por décadas e séculos –, eram analfabetos. Esses foram os verdadeiros autores! Mais tarde, os copistas semianalfabetos começaram a dar nomes aos bois e a registrar os relatos, filtrados por séculos, em documento escrito. Alteravam os textos à vontade, usando sempre dois critérios: o da burrice e o da fraude. O da burrice embutia a incompetência na forma de escrever, na grafia equívoca – lapsus calami[16] –, na interpretação estúpida e inepta de fatos entendidos como verídicos da maneira mais mirabolante possível. Até firulas esquizoides e dementes que nem todos ignoram.
O critério da fraude não precisa de explicações: a finalidade está implícita nos “ajustes” com intenções teocráticas, ao priorizar ideias falsas, teologias obscuras, dogmas doentios e a propagação clássica da culpa. Invariavelmente, a serviço do poder eclesiástico. Mais tarde surgem os copistas profissionais, já alfabetizados, mas com os mesmos critérios anteriores. Fizeram apenas algumas “correções necessárias” para ajudar os fiéis... No circo tudo é festa e não importa os truques aplicados para iludir o público.
Na realidade, a religião do livro começa com o judaísmo. A fé dos hebreus era diferente, visto que o Egito, a Grécia e o Império Romano eram politeístas. Os hebreus, então, projetaram a ideia de um deus pessoal que os favorecia. Era o Deus dos ancestrais, dos patriarcas – temperamental, vingativo, benévolo, senhor da guerra; que punia, recompensava, elevava, humilhava e perdoava o seu povo. Mas era um tipo de fé que apresentava grande vantagem sobre o politeísmo licencioso dos outros povos: a obediência às leis de Yahweh. Era o culto à pureza e à retidão. Uma ideia que precisava ser registrada em livro. Por quê? Para ser respeitada, logo, obedecida. Palavra sem variações, estando em constante disponibilidade de consulta. Era algo para ser repetido. Aceito às cegas. Firmado, plantado. Introjetado. Seguido em coletividade e hierarquia. Aval do alto. Com a assinatura de Deus e ameaças de profetas. Tinha que servir de controle social, de conceito básico para a construção do “povo-raça” eleito... Sagrado!
Desse modo, a Torah já se tornara sagrada de uma forma natural. Foi aceita desde o início como sagrada para os judeus. Com o advento do cristianismo, a Torah tornou-se para os cristãos o Antigo Testamento, como consequência, pois os ensinamentos de Jesus eram oriundos do judaísmo, portanto, não havia como a Lei ser descartada. No início do cristianismo, a Torah era o único instrumento de culto a ser seguido.
Antes, porém, de tratarmos do cristianismo, ficamos com uma questão muito forte no começo do novo século: como encararmos o Novo Testamento se alguns vislumbram o Antigo como uma construção puramente humana? A invenção do povo judeu e de um deus semelhante ao homem... A religião do livro, um conceito demasiado humano.
Duas são as visões mais conhecidas sobre Jesus Cristo. Na primeira, ele é considerado um personagem imaginário, que foi inventado para fundar uma nova religião. Na segunda visão, ele é interpretado como o Messias, o filho de Deus, com a missão de salvar os homens – essa é a ótica devocional, bíblica.
Para dar prosseguimento a este trabalho, que busca expor a religião do Livro, não farei a defesa de nenhuma das duas visões. Pretendo adotar a análise expositiva dos fatos históricos, o método histórico-crítico, para tornar meu propósito consistente, digno de um público que cresce vertiginosamente dia a dia. Um público que não aceita mais as histórias de antigamente, questiona a religião – não se satisfaz com prognósticos, lendas, mitos ou promessas ilusórias –, mas quer a verdade pelos meios da razão.
Assim como acontece com a figura do patriarca Abrahão, a de Moisés também não corrobora como prova histórica para a existência de Jesus. Não há relação. No sentido de “comprovação” da existência de Cristo, somente o Novo Testamento contém os relatos da sua vida. Mas, para a História enquanto ciência, a Bíblia não é suficiente, pelo fato de ser um livro devocional, com o fim primeiro de dar sustentação a crenças. Nesse caso, instrumento dialético sujeito a milhares de interpretações. Portanto, não há prova do Jesus histórico.
No ano 112 d.C., o governador de uma província romana, Plínio, o Jovem, envia uma carta ao imperador Trajano, como relato sobre um grupo estranho, conhecido como cristãos, que adorava um homem chamado Jesus como ao próprio Deus.
Outro caso foi o de um historiador romano, amigo de Plínio, Tácito, que escreveu sobre o incêndio de Roma, em 64 d.C., quando o imperador Nero acusa aos cristãos de tal feito. Eram os seguidores de “Christus (...) que foi executado pelas mãos do procurador Poncius Pilatos no reinado de Tiberius”.
Por fim, o historiador Flávio Josefo faz vaga menção sobre Tiago, como “irmão de Jesus, que é chamado de Messias”, na sua obra Antiguidades judaicas. Tempos depois, aparece algo muito suspeito: dizem que Josefo teria se tornado cristão, mas, segundo seus outros trabalhos, fica bem claro que isso jamais acontecera. Talvez pela querela, os judeus, rapidamente, consideraram-no um traidor do judaísmo, penalizando-o ao deixar de copiar suas obras subsequentes por toda a Idade Média. Aí, então, seus textos passam a ser copiados pelos cristãos, mas cheios de suspeitas sobre sua autoria, onde constam algumas referências a respeito de Jesus, embora não haja relatos do que ele tenha feito ou dito. Josefo caiu em descrédito quanto à historiografia por causa dessas variações com suspeição de fraude posterior.
Então, a partir de tais premissas, não se pode fundamentar a existência de Jesus com rigor histórico, mas podemos, adotando o princípio da admissibilidade, aceitá-la hipoteticamente. Na pior das hipóteses, entendê-la como existência conceitual. Porém, o que ele teria feito ou dito, o método histórico-crítico não tem como sustentar sem comprometer o escopo histórico. Menos ainda se podem obter bases na questão dos milagres ou da própria ressurreição, pois isso jamais estará situado no âmbito histórico. Trata-se de matéria improvável e a ciência não se ocupa do vago.
A questão da fé, além de ser individual in totum, é pegar ou largar, crer ou não. É algo que tem base nas intuições ou desvios cognitivos. Não sendo a fé o instrumento de trabalho adotado para discorrer sobre a religião do Livro, prossigo com a análise histórica expositiva para chegar ao destino.
A difusão escrita do cristianismo começou através das cartas do apóstolo Paulo, dirigida às primeiras comunidades cristãs. Assim, pelo menos, os historiadores afirmam-se unânimes. As epístolas, que eram o gênero literário usado na Antiguidade, foram redigidas por Paulo nos anos 50 d.C., muito antes dos evangelhos terem sido escritos. A primeira carta aos Tessalonicenses foi escrita em 49 d.C., dezesseis anos após a morte de Jesus. Dizem até que Paulo foi o responsável pela existência do cristianismo.
Foram treze as cartas atribuídas a Paulo, canonizadas, que marcaram o início das querelas, pois o apóstolo antecipou-se à grafia do Novo Testamento. Isto representa as primeiras bases dogmáticas registradas, uma vez que sabemos sobre a falta de unicidade teológica da Bíblia, as epístolas paulinas tornaram-se o primeiro passo na direção da pluralidade... Sim, pois essas cartas também defendem princípios dogmáticos que diferem de outros escritores da Bíblia. Os pontos de vista divergem, porque cada um faz parte de momentos históricos desiguais e, sobretudo, de visões pessoais altamente contrastantes. Conclui-se que Deus, portanto, não escreveu a Bíblia, mas os homens.
O que digo é contestado com fúria interior pelo clero, sob a afirmação de que Deus conduziu seus servos escolhidos para que, ao dar-lhes inspiração, registrassem tudo no Livro. Muito bom, mas acho que esses servos não foram bem escolhidos, pois fizeram um “festival literário” de ambiguidades que repercutem até hoje. A prova é que, como mamíferos humanos, os autores da Bíblia disseram que o Livro fora enviado dos céus, mas isso os levou ao descrédito. Caíram em contradição, movidos por sentimentos de vaidade, ótica pessoal e interpretação de mundo individualizada ao extremo. Ainda mais na Antiguidade. Prevaleceram preconceitos, radicalismos, paixões, revanches, sombras do medo e a busca do poder, ao programar os humanos para crer nas coisas que não existem. Para que um inventor de escrituras possa iludir o público com êxito e usar conceitos fortes que dão impressão de conteúdo, é preciso que antes iluda a si mesmo cinicamente. Assim, o que ficou não poderia ser diferente.
Quase a totalidade do povo daquela época era analfabeta. Então, Paulo, que fundou muitas comunidades cristãs, teria enviado às mesmas suas epístolas para que fossem lidas pelos líderes locais mais preparados, instruindo na doutrina aqueles cristãos menos favorecidos intelectualmente. Formava-se, alhures, um processo em cadeia, pois as mesmas cartas seguiam para outras mãos, em diferentes comunidades, e cimentava as conversões ao longo das províncias do império romano ou mesmo fora dele.
É provável que Paulo tenha escrito um volume muito maior de epístolas do que as contidas no Novo Testamento. Até mesmo, não seja o autor das conhecidas por nós. Ou de fato não escrevera nada, apenas ditado suas epístolas para o seu dileto amanuensis[17]. É provável até que não tivesse ditado nada e tudo não ter passado de uma belíssima construção, como o resto da Bíblia...
Tratando-se de escrituras sagradas, aceitamos pela fé (que é irracional), ou presumimos pela História, abordando a metodologia científica. De fato, há especialistas, adeptos do método histórico-crítico, que admitem a existência de sete cartas originais de Paulo, do próprio punho. Mas como fazer prova de tal coisa? Então, onde estão os originais comprovadamente escritos à mão?
Assinaturas podem ser falsificadas, assim como qualquer caligrafia ou lenda antiga, por mais fantástica ou convincente que possa parecer. Tome-se o dilúvio de Noé por exemplo. Tudo isso não excede o nível de conjecturas, uma vez que as cópias mais antigas dos pergaminhos bíblicos, em geral pequenos fragmentos, montados como quebra-cabeças, estão espalhadas por vários museus do mundo – Bristish Museum, Museu do Vaticano, etc. –, entre centenas de outros que fazem parte das suas “catalogações” museológicas e classificações baseadas em datações duvidosas, individualistas, discordantes entre as próprias instituições. O caso é que não há como produzir provas de originais (do próprio punho) dos escritores da Bíblia, até mesmo de Paulo, com toda a sua boa cultura na época, inclusive no domínio do grego.
Se, entretanto, não temos os originais das mãos dos autores da Bíblia, conservamos o direito de duvidar da sua autenticidade e de admitir também as fraudes, que são da natureza do próprio homem. Para ser mais preciso, as cópias que temos das escrituras foram feitas de cópias anteriores e, por sua vez, de outras anteriores, ao retroagir séculos, mas sem nenhum original que prove nada. Só assim o mito pôde ser mantido – sem provas.
Todos sabem que Paulo é a semente que provocou, muito mais tarde, a eclosão do protestantismo. A razão é que Martinho Lutero se concentrou tanto nos escritos do apóstolo, que os adotou como mola-mestra no empreendimento da Reforma. O fradinho Lutero criou um movimento importantíssimo, mas, diante do estopim que ele acendera, deu-se a explosão de um movimento de divisões na fé cristã que não parou mais até os dias de hoje. Isto é ou não ganância do homem? No início da cristandade, houve grupos que combateram os princípios postulados por Paulo.
Dezoito séculos depois, o terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, escreveu que Paulo foi o “primeiro que corrompeu as doutrinas de Jesus”... Até hoje, portanto, o homem não consegue chegar a nenhuma conclusão sobre a verdadeira religião, pois ela simplesmente não existe. Por que, então, esta conveniência feia de fingir que cremos para os nossos vizinhos?
Diante do que foi exposto neste livro até agora, reforço minha teoria em relação à dogmática das religiões, principalmente as que se proliferam como cupins. É minha a proposição: “Em qualquer época da história, todas as divergências dogmáticas causadoras de cisões, dentro de qualquer religião, devem-se, sem refutação, aos interesses políticos na busca acirrada do poder e não às questões doutrinárias de per si. A ruptura não advém por amor a Deus e sim pela sede de poder”. Ao longo do presente trabalho, vou trazer este princípio à tona ainda por algumas vezes, a título de tornar mais claro para o leitor meu axioma proposto.
Com uma pausa nas questões paulinas, avancemos para discutir os Evangelhos e demais livros do Novo Testamento. É preciso, antes de tudo, que se entenda a situação do cristianismo nos seus primórdios. Pairava no ar, naquelas regiões cristianizadas, uma total confusão doutrinária sobre princípios, regras e o ethos cristão a ser adotado depois da possível morte de Jesus. Pareciam baratas tontas nas províncias do império ou até onde se estendiam as investidas da nova doutrina cristã.
Concomitante, começou um festival de autores desconhecidos, que escreviam uma infinidade de evangelhos estranhos. Eram muitos, mas apenas quatro entraram na Bíblia e grande quantidade deles se perdeu nas cinzas do tempo. Outros ficaram conhecidos e sobreviveram, como o Evangelho de Filipe; de Judas Tomé; de Maria Madalena; dos Ebionitas; o Evangelho Copta de Tomé; os Atos de Tecla; a Terceira Carta aos Coríntios; a Epístola de Barnabé; o Apocalipse de Pedro; o Apocalipse Copta de Pedro, etc. Especialistas dizem que houve um relato primitivo, perdido, que deu origem aos discursos de Jesus, presentes nos Evangelhos de Mateus e Lucas. Esse documento recebeu o nome de Quelle[18], mas nunca saímos do hipotético até hoje.
Os pesquisadores afirmam unânimes, desde o século dezenove, que o Evangelho de Marcos foi o primeiro a ser escrito, em torno de 65 ou 70 d.C.; Mateus e Lucas, por volta de 80 a 85 d.C. e João entre 90 e 95 d.C. O Evangelho de Marcos foi escrito, mais ou menos, quinze a vinte anos depois das cartas de Paulo e trinta e sete anos depois da morte de Cristo. Mas, quanto ao de João? Aproximadamente, setenta e dois anos depois da morte de Jesus... Céus! O que teria acontecido depois de tanto tempo de relatos verbais de todo tipo, conflitos insidiosos mantendo um grande jogo de interesses, distorções descaradas dos fatos originais, até que os evangelhos fossem grafados no papel, tudo em nome da construção da religião que salvaria os homens? No mínimo, o que vemos no cenário político internacional de hoje com as mesmas nuances da Antiguidade, ou seja, a mentira. Só que nesse passado distante construíram as falácias que nos serviram de herança.
É preciso, para continuar, entender o seguinte: o cristianismo não era visto doutrinariamente como hoje. A compreensão era bem outra, totalmente diversa do nosso entendimento presente. Ainda não existia uma Bíblia em forma de livro. Eram epístolas múltiplas, centenas circulando, dezenas de evangelhos de vários autores, apocalipses diversos, enfim, todo tipo de literatura aceita em nome de Jesus e dos apóstolos! A canonização das escrituras não acontecera no início do cristianismo, portanto, tudo que surgia era “verdadeiro” e tido como sagrado. As doutrinas variavam de uma província para outra e a falta de entendimento era total. Cada um com sua história e devidas variações.
Vale a pena uma análise da situação cristã dos séculos I e II, quando as novidades apareciam. Sem pé nem cabeça, na base do achismo, “do que me contaram, do que meus pais viram, do que minha avó ouviu, do que José relatou a Silas, que contou a João e depois à Ester, que disse a Matusalém”... Como o povo paga para ser enganado.
É preciso pensar nessa tradição, sim. É possível mesmo que esses textos nunca tenham sido escritos por apóstolos ou companheiros próximos! Qual a prova em contrário? A fé? As testemunhas oculares? Será que relataram na íntegra o que viram? Ou será que viram de fato? Ou que existiram mesmo? Como confiar na existência de alguém que seja apenas baseado no relato de uma testemunha ocular? Se fosse tão fácil assim, não haveria dificuldades para um juiz chegar a uma decisão num tribunal, baseado num crime relatado por uma testemunha ocular. Inquirida outra testemunha ocular, ela apresenta uma versão diferente diante do mesmo juiz, tornando mais complexa a apuração do fato.
Se já é difícil para um magistrado apurar a verdade poucos dias depois de um fato acontecido, como apurar a verdade baseada em relatos da Antiguidade, narrativas com lapso de dezenas ou centenas de anos dos fatos supostamente ocorridos? Pela fé? Ora, o homem do século XXI não tem mais na cabeça a mesma geringonça neural daquele do século dezessete! Repito que é de suma importância a reflexão sobre isso, pois apenas por essa via poderemos entender como o cristianismo foi construído.
Os Evangelhos foram escritos anonimamente. Mateus, Marcos, Lucas ou João não foram os seus autores. Isso aconteceu para que os Evangelhos existissem! Era necessário obter credibilidade da massa de ignorantes da época o mais depressa possível e, então, ganhar a força da tradição, pois ninguém deveria alterar mais nada. Moeda corrente. E assim foi pelos séculos seguintes.
Aqueles homens como pescadores, operários braçais, tecelões de redes, pedreiros, agricultores, camponeses e afins, porventura teriam condições de escrever em aramaico, ou em grego? Como, se eram quase todos analfabetos?
Quanta ingenuidade daqueles que acreditam nessas lendas antigas. Muito tempo depois das possíveis andanças de Jesus pela Galileia, que, segundo indicações, não teve escolaridade e apenas sabia ler (não há provas de que soubesse escrever), sem deixar nada registrado do próprio punho. Na realidade, os Evangelhos foram elaborados e escritos em grego. Aproximadamente, de trinta a noventa e cinco anos depois da sua morte.
Se, de fato, os apóstolos existiram e faziam discursos, pregando as doutrinas de Cristo, faziam-no de forma absolutamente intuitiva com os meios do senso comum, do jeito que o mundo da época se comunicava. Precariamente, pois nem dez por cento do povo de todo o império romano sabia ler e escrever. Mais ainda, falavam mesmo em aramaico e não em hebraico. Em grego, nem pensar.
Como no final do século I alguém poderia saber, em meio a dezenas de evangelhos que rolavam no império, quais seriam os evangelhos genuinamente apostólicos? Como os cristãos poderiam identificar os ensinamentos de Jesus e o que ele verdadeiramente falara? Que monumento de insanidade e oportunismo! Os quatro Evangelhos só foram canonizados no século IV e por critérios falaciosos! Nenhum deles foi escrito na época de Jesus e, muito menos, por qualquer um dos seus seguidores. Os que conhecemos, foram escritos dezenas de anos depois de Jesus, por indivíduos que não o conheceram, falavam outro idioma e viviam em províncias muito distantes... Pior: deram interpretações totalmente diferentes aos fatos que teriam acontecido, seguindo informações a posteriori, com entendimento diversificado e acrescido de outras ações. Os teólogos que tiveram formação em instituições de peso sabem disso, mas se calam por conveniência. E, volta e meia, fico com vergonha de ter engolido no passado tantas coisas pueris.
As falsificações textuais da Bíblia foram um consenso a partir da sua canonização. Antes, nos séculos I, II e III, não havia consenso nenhum. Imaginemos, por mais de trezentos anos, um verdadeiro engenho de criações teológicas sobre Jesus e seus discípulos... Como esses sujeitos descarados, que se intitulavam pais da igreja, poderiam saber o que foi dito por Jesus ou escrito pelos apóstolos tanto tempo depois dos primeiros anos do cristianismo? A farsa montada por séculos, segundo Nietzsche “a mentira de séculos”, exala seus últimos suspiros diante da globalização e das violentas transformações sociais que presenciamos atualmente.
Foi dessa maneira que o cristianismo se propagou: cada um conta uma história, que repassa para o outro já com um tom diferente. Depois, de outro para outro, com uma interpretação “mais clara”. Então, repete-se: outro para outro, já com tendências a uma visão pessoal. Assim, mais outro “melhora” a história para dignificar as coisas que o último absorve. Desta feita, outro já tem uma compreensão admissível de um fato e logo conta para outro, alterando o fato. Isso com a melhor das intenções, “engrandecer” o próprio Deus ad infinitum.
Imaginemos essa prática depois de dez anos. De vinte anos. De trinta anos. Depois de três séculos, até esse monte de lendas e contos serem canonizados. Por isso, foram obrigados a canonizar as escrituras às pressas para acabar com a proliferação das ficções desenfreadas, reduzindo-as à essência aceitável para o consumo balanceado das nossas refeições espirituais do dia a dia.
No momento da leitura deste livro em que nos encontramos, faço um apelo aos religiosos, principalmente aos que se mantêm inflexíveis nos dogmas, que tentem analisar o período de cento e setenta anos após a morte de Jesus. Apenas por uma questão de honestidade, admitamos a nossa distância do senhorio de qualquer tipo de verdade. Sejamos reflexivos.
Arrazoemos, então. Depois da morte de Cristo, a Bíblia nos traz um quadro sugestivo de que as coisas, dali em diante, andaram de uma forma absolutamente resolvida em termos doutrinários e com a expansão pacífica do cristianismo. Às mil maravilhas? Nada pode ser mais equivocado. Era exatamente o oposto. O que se constrói sobre bases falsas não sobrevive.
Nos primeiros três séculos do cristianismo, as coisas ferveram em dissensões, interesses e conflitos de todo tipo. Cada grupo do cristianismo das origens reivindicava para si as palavras que Jesus teria de fato pronunciado, assim como os escritos autênticos deixados pelos apóstolos... As divergências se multiplicavam e as inimizades também. Os primeiros grupos cristãos entravam em conflito por pontos de vista totalmente contraditórios entre si. Exatamente como hoje, cada um sustenta ser o detentor da verdade dogmática e fim de conversa.
Eram dezenas de grupos em batalha teológica nos primórdios da cristandade, porém, vou fazer comentários de apenas quatro deles, que foram mais os importantes: ebionitas; marcionitas; cristãos gnósticos e proto-ortodoxos.
Os ebionitas eram judeus convertidos ao cristianismo, tinham um foco obsessivo em Moisés e seguiam a obediência integral à Torah, por se considerarem descendentes diretos dos hebreus das tribos do Sinai. Estudiosos afirmam que o nome do fundador da seita era Ebion. Outros já dizem que o nome vem de ebyon, que significa “pobre”, porque os mesmos da seita haviam feito voto de pobreza ao decidirem seguir a Cristo.
Mas essa maneira de crer em Jesus significava, para o ebionita, manter o vínculo com a lei judaica e buscar o próprio Messias prometido aos hebreus. Portanto, para seguir a Cristo, o ebionita teria que ser judeu e, se um gentio se convertesse ao judaísmo, seria submetido inexoravelmente à circuncisão.
Infelizmente, os ebionitas deixaram poucos escritos, e nenhum registro de doutrinas ou hierarquias. As informações que temos sobre eles são relatos feitos por outros grupos cristãos da época. Os ebionitas divergiam das doutrinas de Paulo, pois eles só viam como possível a salvação através dos requisitos da lei.
Por razões de não terem conhecido o Evangelho de João, a formação teológica dos ebionitas não considerava o nascimento de Jesus na forma virginal de Maria. Então, para eles, Jesus fora fruto da união sexual entre José e Maria. É preciso que se entenda a visão dos tais, uma vez que não conheceram os Evangelhos do jeito que vemos hoje. Jesus fora, apenas, o resultado da adoção por Deus, como filho, mas de carne e osso, por ter guardado a lei na íntegra. Deus, então, o abençoara com a adoção. Por isso, os ebionitas eram chamados de “adocionistas”. Jesus não era filho de Deus desde o início dos tempos – foi adotado na ocasião do seu batismo –, quando teria ouvido a voz do Pai: “Tu és meu Filho, hoje eu te concebi”.
Os ebionitas eram inimigos da teologia de Paulo, acusando-o de heresia por facilitar o acesso a Deus sem o cumprimento das leis, apenas pela graça. Lógico, aceitavam acima de tudo a Torah, com acréscimos de alguns documentos cristãos se estivessem fixados na lei de Moisés. O principal documento, para eles, era um livro um tanto diferente de Mateus. Um “Mateus antigo”, em aramaico, que não continha os dois primeiros capítulos, omitindo a narrativa do nascimento de Jesus por Maria na condição de mulher virgem.
Dizem alguns especialistas que o Mateus antigo que eles usavam era uma mescla do que seriam, mais tarde, Mateus, Marcos e Lucas do Novo Testamento. Uma curiosidade nos ebionitas é que eles, fiéis à prática dos rituais do Antigo Testamento, opunham-se a qualquer tipo de sacrifício de animais e eram vegetarianos... O porquê do radicalismo dos ebionitas em relação à guarda da lei era, simplesmente, pelo fato de não existir ainda o Novo Testamento como o conhecemos hoje. Mas eles tinham os próprios livros sagrados e a Torah como regra maior. Importa que olhemos para isso através da história, não para os fatos do mundo atual.
Foram os marcionitas o segundo grupo importante na formação do cristianismo, seguidores de Marcion, um pregador e “teólogo” do século II, que nasceu em Sinope, no Ponto, ao sul do Mar Negro. Ainda jovem, foi para Roma, onde inevitavelmente causou divisões e conflitos nas igrejas, sendo banido da cidade.
Marcion escreveu a obra Antitheses. Nela, estabeleceu a invenção de dois deuses, ao dividir o pressuposto já existente no Deus do Antigo Testamento e no de Jesus. O antigo, Deus dos judeus, era um carrasco, irado por natureza, vingativo; enquanto que o outro era bonzinho, afetivo e criador. Essa teologia esquizoide mexeu com a cabeça daquele povo; perturbou o clero ao extremo, por ser “perigosa” e ofensiva às doutrinas até então elaboradas.
Por ser Paulo o herói de Marcion, ele mudou os ensinamentos do apóstolo e ainda afirmava que o cumprimento da lei não traria a salvação a quem quer que fosse. Nesse ponto, nasce a teoria de Marcion: como poderia o Deus do Antigo Testamento, irado, vingativo, ser o mesmo Deus que enviou Jesus ao mundo? Marcion, demente, concluiu que existem dois deuses diferentes.
Parece que essa teologia atendeu às expectativas de muitos cristãos vazios de raciocínio. Marcion afirmava que o Deus dos judeus não era perverso, mas se via obrigado a exercer o controle sobre a maldade dos homens, castigava-os, enquanto que o Deus de Jesus, súbito surgiu por aqui, por pouco tempo, apenas para mostrar Jesus como o salvador da humanidade. Esse deus “bom” não se considerava pai dos judeus, portanto tinha que tirar os cristãos das garras do deus do furor.
Tudo veio de surpresa: o deus bonzinho enviou ao mundo um Jesus que não era de carne e osso, era só a aparência de ser humano, tipo fantasma, pois um ser perfeito não poderia assumir a forma humana. Era a nova dicotomia: um Cristo que parecia humano, mas não era de carne e osso. Fingiu sofrer na cruz, mas na realidade era só a aparência de Jesus...
É lógico que Marcion não era demente. Era um grande ator e farsante da Antiguidade. Mas, como o povo adora ideias tolas e novidades, a doutrina de Marcion foi um sucesso marcante. Ainda usava um termo grego para definir a situação do fantasma divino: dokeo[19], uma visão docética. Os marcionitas ficaram conhecidos como cristãos docéticos.
O Jesus de Marcion não teria subido à cruz em carne, mas de mentira, sem sofrer, porque era só aparência do real. O engodo contraditório não ficou oculto e, então, sobrou o questionamento: um fantasma não tem sangue, logo, como iria derramá-lo em favor dos homens, segundo as escrituras? O espectro messiânico que o pseudodeus-pai apresentou aos homens evaporou-se.
Marcion foi mais um golpista cristão da história antiga, porque organizou o primeiro concílio informal da Igreja romana e lançou a primeira tentativa de cânone cristão para a massa ignara engolir. Nesse rumo, reuniu os líderes da igreja no tal “concílio” para expor a sua doutrinalha, mas levou um escorregão vexatório, sendo expulso da Igreja Romana. Então, o dinheiro que doara para subornar o clero, foi devolvido a Marcion de forma humilhante. No entanto, de volta à Ásia Menor, sua terra, abriu muitas igrejas e seu credo foi acolhido com sucesso por idiotas de outras bandas.
Marcion compôs um cânone próprio com onze livros; as epístolas paulinas e ainda incluiu outros livros de Paulo, que ele, sem escrúpulos, falsificara. De qualquer maneira, como quase tudo na história é falsificado, Marcion foi o primeiro líder esperto a dar o golpe da canonização. Um inimigo seu, Tertuliano, heresiólogo proto-ortodoxo, usou de um sarcasmo que ficou marcado: “Eu vos asseguro, que se pode mais facilmente encontrar um homem nascido sem um coração e sem cérebro, como o próprio Marcion, do que sem um corpo, como o Cristo de Marcion”. Como é fácil posar de falso profeta e ainda passar para a história.
O terceiro grande grupo, nos primórdios do cristianismo, foram os gnósticos[20]. Defendiam que o mal já estava inserido na própria vida desse mundo e não era o resultado do pecado dos homens. Nessa ótica, o requisito para a salvação não seria a fé, mas o conhecimento de si mesmo, da origem do mundo, da missão cristã gnóstica aqui e dos meios de retorno à esfera celestial de origem.
Em 1945, foi encontrado no Egito um verdadeiro tesouro de documentos históricos – por um pequeno grupo de beduínos –, a biblioteca de Nag Hammadi. O líder do grupo era Mohammed Ali, responsável pela descoberta de vários papiros da Antiguidade. Um suposto evangelho perdido, fragmentos que continham passagens da vida e morte de Jesus. Era o Evangelho Copta de Tomé com outros relatos. Caracterizaram-se como a base doutrinária dos cristãos gnósticos. Talvez a descoberta filológica mais significativa do século vinte, responsável pelo conhecimento que hoje temos do gnosticismo e cristianismo primitivos. Hipotéticos evangelhos de Felipe, João e Tiago foram achados, extremamente místicos no todo. Entretanto, uma visão inconcebível para nós, se comparados aos Evangelhos canônicos que conhecemos hoje. Na época em que esses relatos gnósticos foram escritos, nenhum Evangelho dos que conhecemos atualmente tinha sido canonizado.
Os gnósticos acreditavam na existência de apenas um Deus no começo do mundo e ele era perfeito, o Pleroma[21]. Esse princípio maior, depois da criação da matéria, desequilibrou-se e causou o caos no universo. Isso gerou uma doutrina permeada de mitos estranhos, com uma “revelação” vinda de um deus, o “Um”, fora do conhecimento humano, que traria aos cristãos o entendimento oculto necessário à salvação. Esse Um, produziu vertentes, braços, interpretados como entidades secundárias chamadas de Aeons, que representavam poderes. O desequilíbrio causador do caos foi um Aeon, a representação de Sofia[22], que decidiu gerar uma deidade sem copular com Pleroma, portanto, de forma oculta. O deus foi gerado e seu nome conhecido como Yaldabaoh, nada mais, nada menos, que Yahweh, o Deus dos judeus!... Só que esse deus, devido à sua geração através de um ato oculto, era interpretado como um deus inferior, mas que se considerou o Um, não havendo outro além dele. Teria, assim, esse deus secundário, tomado o lugar do Eterno anterior, desconhecido dos homens.
Esse Yaldabaoh, foi o responsável pela criação do mundo e das forças do mal. Desta feita, também criou Adão e Eva, logo, tudo que temos por aqui. Ficou o homem sujeito à busca de um tipo de entendimento especial para obter a salvação, deixando esse mundo considerado irrecuperável. Por isso, a necessidade da gnosis para sair do mundo, ter um encontro final com o Pleroma, que seria o “grande pai” e viver com ele por toda a eternidade...
Cristo, para os gnósticos, era visto à maneira dos marcionitas: não era de carne e osso. Esse tipo de Jesus fantasma, traria a gnosis ao mundo e permitiria aos homens o retorno ao “pai de verdade”, o Pleroma. Toda essa história tem um pouco da cultura grega, algo estoico, um tipo de ataraxia. De fato, os gnósticos desprezavam o corpo para não se prenderem à matéria, já que o corpo fazia parte desse mundo – a prisão material. Por incrível que pareça, os gnósticos até reconheciam alguma divindade no Deus dos judeus, como, por exemplo, os Dez Mandamentos e algumas partes das Escrituras. Mas o verdadeiro deus era o Pleroma.
Desse terceiro grupo, auferimos algo importante: foram eles os responsáveis pela herança deixada para muitas seitas de hoje, que ainda cultivam um cristianismo místico, considerado herético pela maioria, de suspeito intelectualismo elitista, restrito a sociedades secretas e grupos efetivamente herméticos. Constituíam uma elite intelectual da época.
Bem, chegamos ao quarto grupo, os proto-ortodoxos. O mais importante deles, pois foi o grupo que escolheu os evangelhos, cartas e demais escritos que deveriam ser incluídos no Novo Testamento. O que temos hoje foi definido por eles. Selaram o destino das escrituras, porque eram fortes politicamente e mais contidos com a propagação das lendas iniciais do cristianismo.
Foram denominados proto-ortodoxos, porque fizeram parte da pré-ortodoxia[23]. Construíram o que achavam certo, ou melhor, sufocaram as múltiplas opiniões dos seus oponentes, que tinham disponíveis há dois séculos, ordenando-as num livro. Esse grupo se encontrava robustecido desde o início do século III e dispunha dos autores mais eruditos da Antiguidade cristã, os que melhor cimentaram seus textos teológicos, obviamente com bases na confecção mitológica anterior, desde os tempos abraâmicos...
No início do século IV, Roma, como capital do império, era o centro das atenções do mundo existente. Esse império vil se tornava problemático com a descentralização crescente do poder. Suas províncias se enfraqueciam e o povo ansiava por mudanças, devido à complexidade da expansão do próprio império. É nesse momento máximo da história que se desenvolve a mais brilhante estratégia de marketing político vista até agora: Constantino se converte ao cristianismo, recontextualizando a cristandade.
Caius Flavius Valerius Aurelius Constantinus, Constantino I, o Grande. Nome de alta envergadura, de imperador. Um talentoso líder que tirou o cristianismo de uma enorme confusão e fez dele um clichê. O cristianismo estava na moda, um sinônimo de status. As pizzas, então, foram encomendadas, pois o solo era italiano.
Constantino teve um conveniente desvio cognitivo: a visão de uma cruz no céu, com a inscrição In hoc signo vinces[24], às vésperas da batalha contra Maxêncio, na ponte Mílvia. Constantino venceu a batalha e se converteu àquele tipo de cristianismo. Ainda disse que Jesus lhe falara em sonho, ensinando-lhe a fazer o sinal da cruz antes de entrar em qualquer batalha... Assim, tudo daria certo para a unificação do império.
O imperador apoia o concílio de Niceia, em 325 d.C. e faz uma monumental celebração: proclama-se o décimo terceiro apóstolo! Politicamente, Constantino ainda realiza outro grande feito, só que já no leito de morte, em 337 d.C., ordena que um bispo considerado hereje o batize, visto que entrara em conflito com os bispos da Igreja de Roma, devido às suas imposições no concílio de Niceia. Com essa atitude, além de ter mandado canonizar sua mãe Helena, ele consegue juntar heréticos e ortodoxos em prol da unidade do império. Foi uma medida digna dos nossos políticos atuais. Convém ressaltar que o conceito de heresia veio a existir a partir da canonização das escrituras, pois o que estava fora delas tornou-se erro absoluto. Tempos depois, em 380 d.C., o imperador Teodósio decreta o cristianismo religião do Estado. Nasce o catolicismo romano e todos os que o rejeitam, são agora barbaramente perseguidos... Principalmente, os judeus.
Nesse cenário favorável aos proto-ortodoxos, o imperador Constantino como aliado teológico, o grupo triunfa sobre seus rivais ebionitas, marcionitas e gnósticos. Hoje, podemos identificar a torpeza do jogo político por trás desses acontecimentos, não as ideologias dogmáticas como imaginávamos. Isso traz meu axioma à tona: “Em qualquer época da história, todas as divergências dogmáticas causadoras de cisões, dentro de qualquer religião, se devem aos interesses políticos na busca pelo poder e não às questões doutrinárias em si. A ruptura não advém por amor a Deus e sim pelo poder”.
É preciso analisar, através da crítica histórica, o caminhar da religião para entendermos a malícia e a maldade dos homens. Pela argúcia dos seus autores, os cristãos proto-ortodoxos intuíram a necessidade de estabelecer uma “prova” maior, que determinasse a derrota dos cristãos gnósticos. Qual seria essa prova? A vida. Dar a vida por amor a Cristo, coisa que os marcionitas e, muito menos, os gnósticos jamais fariam, devido à natureza dos seus princípios doutrinários fantasiosos. Os primeiros, porque não dariam a vida por um espectro que nem chegou a conhecer o sofrimento. Os segundos, porque interpretaram a figura de Cristo demasiado simbólica e pseudointelectualizada.
Foi plantado um conceito na mente dos proto-ortodoxos: valia realmente a pena oferecer a vida por Cristo, jamais negá-lo em qualquer circunstância, mesmo diante das feras do Coliseu. Surgiu, a partir daí, a cultura do sacrifício como lucro e investimento na eternidade com Deus. Aliás, o próprio apóstolo Paulo introduzira esse conceito através dos seus relatos. Para ele “o viver é Cristo e o morrer é lucro”. Na sociedade em que vivemos isso pode ser entendido como severo desequilíbrio mental e um delírio análogo ao mito abraâmico de imolação da prole.
No século II, essa ideia encontrava abrigo na mente dos proto-ortodoxos. Esses cristãos obcecados começaram a produzir martirológios: relatos textuais de terríveis sacrifícios humanos, como no caso de Inácio de Antioquia, Policarpo e o próprio Estevão, que serviu para que Paulo fosse induzido pela emoção a se tornar apóstolo. Ora, se bem que não podemos saber, nem de longe, quantos cristãos foram martirizados na Antiguidade. Pelo menos, existem dados históricos indicativos de milhares, nos dois primeiros séculos da cristandade. Há, também, no universo desses martirológios, os relatos mais desviantes possíveis da realidade. Por exemplo, o de Inácio de Antioquia, quando anuncia “o desejo de se tornar pão para as feras selvagens, como trigo de Deus; ser moído pelos dentes das feras e triturado por inteiro para se tornar o puro pão de Cristo”... Isso mais me parece o comportamento da esquerda caviar no Ocidente, que repete o dito “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”.
O que mais me chama a atenção em tudo isso, é a posição matreira e maldita do Estado romano, no silêncio da espreita, para o endosso na propagação dos martírios. Foi o jeito encontrado para perpetuar a religião ligada ao poder. Uma vez estabelecida a “prova” para diferenciar os cristãos proto-ortodoxos dos demais grupos, ficou fácil estabelecer o cânone das escrituras e construir uma Bíblia que não mudasse jamais. Pois, que se constate, não mudou. O cristianismo deu certo desde então. Mas e agora que descobrimos o enredo, como vê-lo através da crítica histórica? O que fazer? Fingir que não sabemos, como há dois séculos, o que poucos sabiam? Hoje, a cada instante, sabemos mais. Temos a Internet, a desesperança e o esgotamento. Temos ainda mais: o talento nas veias para enganar o outro.
Observe-se a situação das igrejas nos séculos II e III. Não havia, ainda, o que hoje entendemos por ortodoxia e heresia. Pus nesta ordem, porque a heresia só poderá existir a partir do que for ortodoxo. Esse conceito veio à luz e se firmou para sempre quando as Escrituras foram canonizadas. Portanto, quando um grupo ebionita, marcionita ou gnóstico amparava sua doutrina, fazia-o com plena convicção de “sentimento de opinião correta”. Claro está que cada grupo se achava dono da crença certa e a professava como verdade absoluta. Nem tudo era má-fé no quase tudo.
O conceito de heresia foi formado gradualmente pelos líderes e autores proto-ortodoxos, que tudo escreviam, fortalecendo suas opiniões contra os grupos antagônicos. Assim, teciam a malha do que viria a ser o Novo Testamento, pois as escrituras judaicas eram o parâmetro da cristandade no seu início.
À medida que os proto-ortodoxos esculpiam sua teologia em cima das epístolas de Paulo e dos Evangelhos (nesse aspecto foram mais inteligentes que seus rivais), os outros grupos perdiam força. Inevitável, mas o caminho escolhido foi da seleção dos livros que seriam canonizados, dirimindo a batalha de princípios, existente até então. Os proto-ortodoxos elegeram como critério para a canonização um método regulador comum: só o que fora escrito pelos apóstolos seria digno da canonicidade.
Os proto-ortodoxos reconheciam a autoridade absoluta dos apóstolos enquanto autores dos textos do Novo Testamento. E agora? Mas as cartas de Paulo são questionáveis. Os especialistas concordam com a autenticidade de apenas sete delas no aspecto estilístico, paleográfico e filológico, embora não sejam originais do próprio punho. Os manuscritos que temos em museus são cópias, pelo menos de cento e cinquenta anos após a sua primeira escrita. Dá para perceber o que representa uma lacuna de cinquenta anos para chegar ao papel? Não existe nada, absolutamente nada, escrito do próprio punho pelos apóstolos... Os quatro Evangelhos são anônimos! Jamais Mateus, Marcos, Lucas ou João escreveram qualquer um deles e o pior é que cada copista não deixou de fazer a sua “festinha” particular, por inépcia, ou dolo. Enfim, todos deixaram suas marcas de alteração nos textos.
Nos primeiros três séculos do cristianismo, os copistas das Escrituras eram pessoas, ora com certo grau de instrução, ora limitadíssimas intelectualmente. Elas se arvoravam em todo tipo de interpretação na cópia de “originais” anteriores. Como eram indivíduos inconsequentes, sem ter a real dimensão do que faziam, alteravam os textos por ignorância ou má-fé. Nesse tempo do amadorismo nas cópias, guardavam um caráter regional, pois as cópias se diferenciavam bastante de uma província para outra. Não era possível o intercâmbio entre copistas de localidades distantes, pois sempre resultava numa forma fechada de interpretação das Escrituras. Não passavam de documentos de “regiões surdas”, com aspectos herméticos e intelectualidade de piso inferior.
Foi somente no princípio do século IV, quando o imperador Constantino se “converteu” ao cristianismo, em 312 d.C., que a sociedade romana sofreu profunda transformação. O cristianismo passou a conferir status social aos novos adeptos, virou moda e contagiou o império. Que paradoxo asqueroso... Depois, através do imperador Teodósio, o cristianismo se tornou a religião oficial do império romano. As nuances ocultas da religião, que já eram vis, apodreceram de vez.
Durante a época de Constantino, quando indivíduos de melhor preparo cultural aderiram à moda do cristianismo, se tornaram copistas profissionais e, mais tarde, os monges assumiram por completo essa tarefa, copiando as escrituras gregas. Trabalhavam nas scriptoria[25] das abadias, com mais competência, mas nem por isso com mais honestidade. Essas abadias situavam-se no Império Bizantino, por isso o idioma copiado era o grego. Desta feita, logo, na parte ocidental do Império Romano, o povo já clamava por cópias em latim, que era a língua corrente.
Como mencionado antes, para atender ao apelo do povo, o papa Dâmaso I determinou a são Jerônimo, o maior “intelectual” da Igreja, a tradução oficial das Escrituras do grego para o latim, com o objetivo de alcançar um resultado positivo e repercutível na aceitação popular do Novo Testamento latino. Chamou-se essa tradução de Vulgata[26] latina. Deu certo, pois foi aceita pelo povo, usada pela Igreja durante séculos e superou as traduções antigas no grego, que eram pouco acessíveis. Agora, reflitamos: o que nesse mundo redondo não serve para enganar os analfabetos?
No século XV, em 1400, nasceu Johannes Gutenberg, inventor da imprensa, chegando ao fim a longa e penosa fase dos copistas das escrituras. Com a impressão das páginas através dos tipos móveis, vencia-se um grande obstáculo para os copistas ab manu[27]. Todas as páginas impressas passaram a ser bem semelhantes, impedindo erros não intencionais. Esse fato pode até não parecer importante, mas foi um veículo imprescindível, pois através da interferência da máquina, abriu-se uma nova era para a escrita num contexto geral e, particularmente, para a formatação profissional do produto Bíblia.
A primeira grande obra a ser impressa por Gutenberg foi a Vulgata latina, que demorou seis anos para ficar pronta. Suas edições, assim, se multiplicaram progressivamente. Por quase um milênio, não se usava mais a Bíblia em grego na Europa ocidental. Só a Vulgata latina era utilizada pelo clero e por pesquisadores. Então, no mesmo século da invenção da imprensa, o Ocidente voltou a se interessar pelo grego.
Surgiu, então, uma figura ilustre, Erasmo de Roterdam[28], ordenado sacerdote pelo papa Júlio II em 1492, mas obteve a dispensa dos votos. Quedou-se imparcial quanto à Reforma de Lutero e criticou a arrogância dos católicos. Mais tarde, tornou-se um humanista, essencialmente ligado ao saber, dedicando-se à literatura e ao pensamento religioso.
Erasmo decidiu publicar uma edição do Novo Testamento grego, que, por ser a primeira edição publicada, foi chamada de Editio princeps[29]. A edição foi fundamentada em manuscritos do século XII. Pasme-se: mil e cem anos depois do nascimento de Jesus, segundo os Evangelhos. Quanta coisa mudou nos textos depois de tanto tempo, mas há quem refute esse princípio. O que vamos fazer? Contra fatos e provas não há argumentos. Mas para os crédulos em milagres e na falta das boas letras, Deus tudo adapta segundo seus planos... A edição de Erasmo foi impressa em 1515 e adotada pelos impressores, que reimprimiram o texto por mais de trezentos anos. O que temos diante dos nossos narizes, é aquilo que somos, vemos apenas o que nos interessa.
Mais ou menos na mesma época, Ximenes Cisneros[30] resolveu, em loucura competitiva com Erasmo, editar o Novo Testamento trilíngue, contendo três colunas por página – em latim, hebraico e grego. Essa edição ficou logo conhecida como Poliglota complutense, publicada na Espanha, cidade de Alcalá (Complutum em latim), daí o nome da edição que foi distribuída ao público só em 1522, quando o infeliz Cisneros já estava morto. O cardeal nem viu sua obra circular e o Vaticano virou a página do coitado, que virou poeira...
Os documentos que serviram de base para a Poliglota complutense foram emprestados ao cardeal Ximenes pelo Vaticano, através do papa Leão X, moldando os caminhos textuais da Bíblia mais e mais no rumo do catolicismo romano. Percebe-se como uma religião de origem tão humilde, que inventaram em cima de Jesus, depois de mil e quinhentos anos de distorções, se torna a maior influência política originária do passado para a Idade Média e Renascença.
Permito-me, em tempo, lembrar meu axioma, que mostra as divergências religiosas não como fruto de querelas dogmáticas, mas como resultado da luta interna pelo poder eclesiástico.
Depois desse período de “arrumação” da Bíblia, entraram em cena muitos impressores criativos. Posavam de intelectuais e se destacavam nesse espetacular novo negócio comercial... Primeiro, surgiu Stephanus[31], um impressor que resolveu imprimir a Bíblia com a inclusão de capítulos e versículos numerados. Estienne seguiu a profissão de impressor, que era a mesma do seu pai, procurando se aprimorar no grego, latim e no próprio hebraico.
Estienne resolveu “melhorar” a Vulgata de Jerônimo, que existia há uns mil anos, mas durante a Idade Média já haviam adulterado a Vulgata de muitas maneiras e Stephanus entendeu que poderia dar uma boa arrumada no texto na direção da aceitação mais popular, algo mais fácil para o povo digerir... Estienne, “sujeito espetacular” e bem intencionado. Na verdade, eram apedeutas com segundas intenções. A Bíblia de Estienne foi publicada em 1528, sendo o primeiro passo de um design melhorado das Escrituras, que até hoje são chamadas de “sagradas” cegamente.
Stephanus, que era o próprio Estienne, fez boas inovações: arbitrariamente, colocou o livro de Atos depois dos Evangelhos e antes das epístolas de Paulo. Imprimiu a Bíblia em fontes romanas, um pouco parecidas com o tipo de letra que você está lendo agora. Já, então, preconizando os primeiros passos de uma diagramação moderna. Viram só como as coisas mudam? A Bíblia ficou muito mais bonita e se tornou imitada em toda a Europa.
Estienne recebeu do rei da França um belo título: Typographus regius[32], que dava o direito ao sujeito até de traduzir e imprimir obras em latim; hebraicas e gregas. Tanto Estienne tinha a veia de designer que encheu a sua Bíblia em latim de ilustrações... Era tal a aceitação do público de tudo feito por ele, que sua obra tornou-se a base do Textus Receptus[33], mas era apenas um ícone do senso comum, um artista do populacho.
Com isso, Estienne foi perseguido pela Igreja Católica por ter alterado a Vulgata, sendo considerado pelo clero romano apenas um impressor, mas nunca um teólogo. Passou a sofrer várias censuras, acusado de heresia, conseguiu escapar da condenação das chamas e fugiu da França, morrendo fora da sua terra.
Vieram depois outras figuras um tanto ilustres com a missão de “melhorar” as Escrituras: o francês Théodore de Bèze, teólogo protestante; Boaventura, mais Abraão Elzevir (tio e sobrinho), prefaciaram uma edição da Bíblia, em 1633. Aplicando uma jogada de mestre, disseram: “Agora vocês têm o texto que é aceito por todos, no qual nada oferecemos de alterado ou corrupto”[34]. Genial! Foi a partir desse aforismo que o povo engoliu a bola e resolveu “ficar” com essa tradução como oficial. O que me emociona é a bondade de Deus em empregar tantos secretários para fazer essa salada monumental que chamam de escrituras sagradas. Se isso fosse palavra de Deus, eu veria santo Antão de camisola branca, com a pipa cheia de maconha, passeando de bicicleta nas nuvens com minha avó na garupa...
Que estratégia a religião do Livro! Por que os protestantes não adoram objetos em forma humana, mas adoram um livro? Ah, não o beijam... Mas é levado debaixo do braço como uma divisa militar por todos os lugares! Exibem-no para a baixa classe social, lutam para parecerem convictos, abrem-no para declamá-lo com pífios ares professorais, de dedo apontado, e repetem: “Assim diz o Senhor”... Será que não é a mesma coisa que as tábuas da lei? Eram carregadas na arca da aliança, com o cajado de Aarão e o pote de maná, como aviso divino. Se tivessem existido mesmo e encontradas, aquelas pedras seriam adoradas pelos judeus até hoje.
O homem tem instinto de veneração. Qualquer coisa a mais que aconteça na sua vida é motivo para que haja atribuição a um princípio qualquer. O homem precisa curvar-se, nem que seja diante de um raio caído no chão. De um trovão. De um sujeito feio, todo coberto de palha. Qualquer porcaria serve, o negócio é curvar-se, porque mostra submissão, medo e sensação de obediência. Isto é pura falha neural, um subproduto da mente. Quando Lutero, debaixo de forte tempestade, cruzava um bosque na Alemanha e quase foi atingido por um raio, presumiu que Deus o chamara para a missão de reformar a Igreja de Roma. Com toda certeza, houve um daqueles violentos desvios cognitivos violentos na mente do fradinho Lutero, já mencionados no início do nosso trabalho.
Até quando vamos considerar sagrado tudo o que os homens nos dizem ser sagrado? Por que um livro é sagrado? Por que um amuleto em forma de cruz é sagrado? Por que damos beijos em medalhinhas? Por que beijamos pedras, ossos, panos e sei lá mais o quê? Por que não adoramos a folha de parreira de Eva, ao invés de fragmentos da cruz? Por que não pensamos? Por que não beijamos leprosos que são vivos e poderiam sentir nosso amor? Aliás, diriam alguns mais materialistas que, se não tivessem tantas bactérias, seriam as notas da nossa carteira que deveriam ser beijadas, porque são elas que salvam nossas vidas e nos dão dignidade.
Esse texto aceito por todos, que foi o Textus Receptus, abreviado “TR”, do Novo Testamento grego, surgiu a partir da visão de Erasmo de Roterdam, publicado e difundido pelos impressores citados, além de outros, por mais de trezentos anos. Esse TR deu origem também à Bíblia King James, criticada e comprovada como a pior tradução feita na Europa até os dias de hoje.
Tudo se encaminhou direitinho no reino das margaridas. As igrejas já possuíam o Textus Receptus, “aprovado por Deus” e pelo mundo – que maravilha. Para que mais? Todas as dúvidas sobre as Escrituras estavam resolvidas, o mundo cristão era feliz e a cada domingo todos ficavam contentes na igreja... Será que isso era assim mesmo? Não. Que pena, não era mais assim. Aceitemos a realidade de que fomos engolidos pela mídia cristã, que não é de hoje.
Em 1633, pouco depois que o Textus Receptus fora anunciado por Elzevir, nasceu um indivíduo na Inglaterra, em 1645, que recebeu o nome de John Mill. O tal cresceu, resolveu estudar Deus e ingressou no Queen’s College, Oxford, como servidor em 1661. Depois, recebeu o grau de mestre e, no mesmo ano, discursou diante do Oratio Panegyrica, na inauguração do Sheldonian Theater. Em 1676, tornou-se capelão-mor do bispo de Oxford. Em pouco tempo, foi nomeado reitor de Bletchington, em Oxfordshire. Logo depois, eleito capelão do rei Charles II. Com o andar da carruagem, foi diretor de St. Edmund Hall, em Oxford e, em 1704, foi nomeado pela rainha Anne com a dignidade de cônego em Canterbury. Acho que merecidamente.
Acontece que, para distúrbio da Igreja, John Mill criou um dos maiores questionamentos da história sobre o Novo Testamento. Após um investimento de trinta anos em estudos profundos, trabalho pesado, numa nova direção interpretativa das escrituras, Mill inaugurou o campo da crítica textual do Novo Testamento. Isso causou um terrível escândalo na época: Mill anunciou a descoberta de trinta mil variações e discrepâncias no Novo Testamento! Grande foi o abalo no meio teológico, mas estava evidente a importância da sua descoberta. Indefensável pelo clero.
Os teólogos ficaram loucos! O Textus Receptus escorregou ladeira abaixo e restou a pergunta: se as palavras do Novo Testamento estão truncadas, os “originais” desacreditados, como prosseguir com o ensinamento da doutrina cristã? O estranho aconteceu: duas semanas após a publicação da sua obra, em 1707, Mill faleceu. Segundo alguns, “por ter bebido café em excesso”... Tenho o leve pressentimento que os benfazejos sacerdotes arrancaram as tripas de Mill. Coisas da fé. Nada sabemos sobre os detalhes, mas isso ocorre entre homens santos com certa frequência. São desacertos a serem resolvidos no seio da família cristã. A cristandade abalou-se como nunca, pois ficou exposta e construída, pela primeira vez, a tese magistral defendida por Mill, desabonando as Escrituras. Mas temo que, ao lerem isto, alguns leitores não se importarão.
Tempos depois, aparece em cena uma figura engessada no fundamentalismo do século dezoito, Daniel Whitby[35], ministro evangélico, que apresentava ao mundo sua contestação a John Mill, na obra Examen lectionum Johannis Milli.
Whitby era um teólogo oriundo do pensamento arminiano, que reforçava aspectos nublados da teologia dos remonstrantes[36], como a condenação no dia do juízo final e a salvação somente para os homens de fé. “Os indivíduos só perceberiam a vontade de Deus através do Espírito Santo, restando ainda o risco da queda da graça cristã. O homem recebera também de Deus o direito de exercer a liberdade perfeita do livre arbítrio”.
Veja-se que esses dogmas eram basilares para a contestação a John Mill: insistia Whitby que Deus, sendo perfeito, não permitiria esses milhares de erros nas Escrituras, causando interferências quanto à compreensão da mensagem salvacionista. Daí, o ministro foi conclusivo em reiterar que “a Bíblia é a palavra de Deus vírgula por vírgula”.
Whitby atacou Mill o que pôde, para fortalecer o princípio doutrinário basilar da Reforma Protestante, a sola scriptura[37]. A lenda conta que o Deus perfeito deixou o Antigo Testamento para os hebreus e permitiu que eles fizessem melhorias. Bem mais tarde, veio outro grupo menos legalista e completou o sentido que Deus não dera no início: escreveram outro livro mais atualizado para juntar ao primeiro. Mudou um pouco a proposta, mas isso não significa que Deus não queira o melhor para nós...
Veja-se de novo: esse argumento, aparentemente simples, é mais do que um tronco de carvalho – admite que os homens tenham feito alterações no Livro, mas não é relevante, “porque Deus está cuidando da sua palavra para que ela não perca o sentido”... O tiro, entretanto, saiu pela culatra! Quem tomou conhecimento da tese de John Mill não conseguiu esquecê-la. Disseram até que Pedro, como autor de textos bíblicos, era um ótimo pescador... O quadro, então, mudou: daquela época até hoje, ao invés das trinta mil variações de Mill, foram descobertas mais de trezentas e trinta mil!
Muito bem, falemos de outro sujeito com a mesma importância de Mill e Whitby – que era Richard Simon[38]. Suas principais obras foram Histoire critique du Vieux Testament e Histoire critique du texte du Nouveau Testament, que foram o golpe de morte para Whitby, pois defendem a ideia de que a crença correta estaria baseada nas tradições apostólicas da Igreja de Roma e não na interpretação literal da Bíblia. De certa forma, Richard Simon dera as mãos ao protestante Mill para derrotar o fundamento de Whitby, o próprio dogma do protestantismo – a sola scriptura. Reforçou a obra de Jerônimo, a Vulgata latina, por serem os textos gregos conflitantes, duvidosos, quando despontou a necessidade de “seleção” textual e tradução para o latim. Então, o padre canonizado, Jerônimo, se transforma num semideus com a missão suprema de dar um jeitinho nas Escrituras. Eis que o santo salva o texto grego de permanecer degenerado... Beneplácito da santa madre Igreja.
Os textos da Antiguidade não merecem mais confiança? Não, decididamente. Precisamos de um santinho, por isso, Simon pegou uma carona oportunista e engenhosa, mas que balançou as colunas do protestantismo com sua declaração de que “não existe escritura que não tenha sido alterada”. Entretanto, não devemos tomar esse argumento como universal, porque ele é católico romano. Porém, a presunção do Vaticano marcou o povo, que não é tão bobo...
Um novo pesquisador, nascido em West Yorkshire, Inglaterra, Richard Bentley[39], usa de outro artifício para derrubar a tese de Mill das trinta mil variações do Novo Testamento grego: todas as variações anunciadas por Mill não teriam sido inventadas, mas somente trazidas à tona por ele. Bentley reforça a ideia de que elas estavam ali desde o começo e que Mill seria apenas responsável por criar escândalo com as Escrituras... Que verme gosmoso.
Bentley recebeu, logo depois da ordenação, o maior título honorífico de mestre do Trinity College, em Cambridge e o primeiro assento da Catedral de Worcester. Depois, envolveu-se em conflitos no Trinity, sendo perseguido e punido pelo bispo de Ely. Bentley então firmou seu propósito, que era de restaurar, após tantas cópias corrompidas, o texto do Novo Testamento como na época do Concílio de Niceia. Malandro completo, que forjava um texto “original” das escrituras... Achou que poderia conjugar a Vulgata latina com o antigo Códice Alexandrino. Acontece que esse códice do século V inclui dois livros que não fazem parte do cânone, que são I e II Clemente. Esse sujeito, Clemente, teria sido o segundo papa, sucessor de Pedro e indicado pelo mesmo.
A razão primeira dessa “restauração” do Novo Testamento era mostrar as variações de texto que já existiam nas primeiras cópias da Antiguidade. Só que, ao basear-se na Vulgata como viga de sustentação para o seu trabalho, Bentley concorda com Jerônimo e dá aval ao autor que a traduziu para o latim à sua própria maneira, com ajustes de texto aqui e ali, até priorizar a interpretação pessoal.
Bentley confiou em Jerônimo para fundamentar a obra, crédulo de ter reduzido as trinta mil variações textuais de John Mill. Mas por circunstâncias naturais, Bentley se envolveu em conflitos com colegas e concidadãos, desgastando-se completamente com o público. Isso tudo por conta da ilusão de reproduzir o Novo Testamento na “pureza do texto original”, o que não poderia passar, lógico, de um completo fracasso. Na verdade, não era nenhuma ilusão, mas dolo cristão, pois ele não era nenhum idiota. Porém, ele se recuperou com a releitura dos clássicos – helenista que era – e morreu aos oitenta anos de pleurisia, entre as muitas xícaras de chá.
O século XVII produziu outro pesquisador que, desencantado com a teoria de Mill das trinta mil variações, atirou-se ao trabalho extremo para provar a segurança da “palavra” de Deus. Era Johann Albrecht Bengel[40], teólogo rígido de pedra, com empenho doentio no ensino literal das Escrituras. Estudou na Universidade de Tübingen; deu um mergulho profundo nas obras de Aristóteles e Spinoza, tornando-se doutor em divindade.
Essa posição inflexível e extremista, de rigor teológico bruto, causou prejuízo ao trabalho de Bengel, que não conseguiu separar a fé da razão, ao preterir uma leitura histórica e racional do Novo Testamento. Sua atitude restrita e de implacável dogmatismo é resultado do que já tratamos antes – o desvio cognitivo de grande proporção. É por isso que, a partir dessa posição míope, tendemos a demonizar as crenças que se distanciam da nossa e adotamos um viés comportamental mais próximo dos babuínos.
Bengel era um sujeito por demais criativo, dono de um dos grandes feitos paranoicos que marcou a história: conseguiu, cem anos antes, profetizar o fim do mundo para 1836. Sobre o dia e a hora, não tenho maiores informações... Pena ele não ter visto o resultado. Sua tese era um complicador teológico, pois primava pelo texto complexo e admitia alterações bíblicas, feitas pelos copistas, com o objetivo de “aperfeiçoar” as Escrituras.
O visionário Bengel não queria mais do que Bentley: a abordagem para estabelecer o texto original do Novo Testamento. Como o outro, ele só alimentava ilusão. Bengel terminou caindo no mesmo lugar comum dos seus contemporâneos – não tocou mais do que notas desafinadas – e, ainda por cima, usou o Textus Receptus na edição do Novo Testamento grego. Homens assim não são ingênuos, pois conhecem. Antes, são grandes vigaristas.
Entre tantos pesquisadores das Escrituras no século XVIII, Johann Jakob Wettstein[41], da turma dos empulhadores, nascido em Basel, foi um dos mais destacados. Teve como orientador em teologia o grande Samuel Werenfels, que trouxe à luz o novo princípio de exegese científica, que reforçava a busca de Wettstein para estabelecer o “texto original” do Novo Testamento grego.
Em 1716, na Universidade de Cambridge, tornou-se amigo de Richard Bentley, que tentou persuadi-lo a ir para Paris a fim de fazer pesquisas no Códice Ephraemi. Entretanto, a amizade entre os dois não prosperou por muito tempo – é uma lei invariável –, as divergências se instalam com muita facilidade no universo do intelecto. Desde então, lançou-se à produção febril de um Novo Testamento grego. Wettstein defendia a tese de que, por mais variantes e alterações existentes no texto do Novo Testamento, isso não poderia comprometer a autoridade da Bíblia, uma vez que a sua essência é o que importa.
Wettstein criou impasses com relação à figura de Deus Pai e Cristo, propondo uma diferença maior, já que chegara à conclusão de que não incorporavam o mesmo ser. Isso resultou em querelas com outros teólogos em função do dogma da divindade de Cristo. Wettstein, ao pesquisar o Códice Alexandrino, descobriu em I Timóteo 3-16 um ponto polêmico sobre a natureza de Jesus, que o levou a ser acusado de socinianismo[42], por dizer que os textos foram alterados com a única intenção de manter o dogma trinitário. Imputaram-lhe, então, a suspeição de heresia por parte do clero e culminava com a perda dos seus cargos, mais a expulsão de Basel. Foi um golpe mortal para ele.
Wettstein mudou-se para Amsterdam depois de tanta confusão. Através de um parente, dono de editora, obteve a chance de iniciar a impressão do seu Novo Testamento, mas as coisas não foram adiante por razões desconhecidas. Pelos finalmentes do reino das margaridas, o indivíduo em tela consegue editar o Novum Testamentum Graecum numa publicação magnífica, mesmo usando o Textus Receptus. A diferença do seu trabalho dos demais contemporâneos foi a adição dos textos consultivos em grego, hebraico e latim. Isso enriqueceu a edição do Novo Testamento. Logo depois, Wettstein foi convidado a assumir a cátedra de filosofia no colégio dos remonstrantes – teólogos da Escola de Leyden –, Holanda, o que lhe permitiu sobreviver do magistério até ao fim dos seus dias, em Amsterdam. Todos eles foram muito hábeis com o cuidado dos próprios bolsos.
Nessa fileira de intérpretes da Bíblia, agora no século dezenove, deve ser mencionado o crítico e filólogo alemão Karl Konrad Friedrich Wilhelm Lachmann[43]. Nos últimos séculos, cresceu rapidamente o número de manuscritos das Escrituras encontrados aqui e ali e, como resultado, a necessidade entre os pesquisadores de estabelecer o texto mais antigo do Novo Testamento. Uma vez que, a cada cópia encontrada, mais e mais variações surgiam, essa penosa tarefa tornou-se algo doentio entre eles. Devoravam-se os calcanhares, à medida que a competição aumentava entre os obstinados missionários da pesquisa...
Lachmann estudou filologia em Leipzig e Göttingen; assim, obteve formação impecável. Comprometido por inteiro com a brilhante carreira acadêmica, tornou-se professor extraordinarius de filologia clássica na Universidade de Königsberg, especializado em gramática alemã antiga. Foi nomeado professor de filologia alemã na Universidade Humboldt, em seguida, membro da Academia de Ciências da Alemanha. Colecionava, na área da filologia, os mais importantes títulos acadêmicos. Por conta de tal carreira, seu método de pesquisa era extremamente rigoroso e destacado na época, embora hoje, diante da crítica moderna, estejam obsoletos.
Lachmann criou assombro entre os colegas e revolucionou a crítica textual adotada pelos seus predecessores. Abandonou por completo o Textus Receptus e deu lugar às suas interpretações pessoais. Seria o princípio de Jerônimo ao organizar a Vulgata?...
Lachmann adotou um cânone pessoal para agrupar os textos com hierarquia: “um erro comum implica numa origem comum”. Apesar das complicações atreladas a esse princípio filológico, ainda é visto como fundamental. Qualquer abordagem ao priorizar a leitura de um texto após outro tende a antecipar a teoria dos “textos locais” de Streeter.
O princípio de Lachman, utilizado para organizar a leitura de manuscritos, viu-se reduzido à escrita de várias maneiras: “Nada é mais bem confirmado do que aquilo em que as autoridades textuais concordam entre si; a concordância tem menos peso quando as autoridades se calam; a evidência de um texto é maior quando testemunhas são originárias de regiões diferentes, do que testemunhas de alguma região menor; os testemunhos textuais devem ser olhados como duvidosos quando as testemunhas, separadas por regiões distantes entre si, ficam em oposição às outras que são vizinhas lado a lado; leituras são incertas quando ocorrem habitualmente de diferentes formas em diferentes regiões e as leituras perdem autoridade quando não são universalmente aceitas numa mesma região”.
O importante é que Karl Lachmann, apesar de ser acusado de plagiar Richard Bentley, pelo menos foi o primeiro exegeta a preterir por completo o péssimo e embromador Textus Receptus, atitude que Bentley não adotou. Mas qual seria o caminho mais confiável, prosseguir no embromativo Textus Receptus ou adotar uma linha metodológica individualizada onde há mais riscos? O fato é que, se existiram originais, foram totalmente alterados na essência ao longo dos séculos. Isso poderia vir de algum deus?
No cenário dos biblistas do século dezenove, temos o seu mais ilustre e pitoresco representante: Lobegott Friedrich Constantin von Tischendorf[44]. Em 1840, esse intelectual aventureiro que não parava de viajar por vários países, nas pesquisas em todas as bibliotecas possíveis. Decifrou o Codex Ephraemi Syri Rescriptus, um manuscrito do Novo Testamento grego do século V. A exemplo dos seus antecessores loucos devotos, ou oportunistas intelectuais, Lobegott interpretou sua vida análoga a uma missão para recuperar o texto original do Novo Testamento... Isso tudo soa mais como uma jogada recorrente entre todos eles: devolver a “palavra” de Deus ao mundo. É uma febre que já tem vários séculos, essa busca dos originais. Parece que, infelizmente, só agora compreendemos as palavras de Nietzsche sobre o edifício de escombros que ele chamou de cristianismo: “a mentira de séculos”. A razão pela qual abandonei a Igreja foi essa que vemos. A razão cultural.
Mestre em uma escola perto de Leipzig, Tischendorf completou sua tese de doutorado em 1838. Tornou-se, então, um grande viajante, empreendendo pesquisas no sul da Alemanha, na Suíça, Holanda, Inglaterra e Itália. Em 1844, foi para o deserto até ao sopé do Monte Sinai, porque seu objetivo era fazer pesquisas no mosteiro de Santa Catarina. Lá, ele encontrou, numa velha cesta, quarenta e quatro páginas da mais antiga cópia conhecida da Septuaginta[45], pois as demais páginas já tinham sido usadas pelos monges para acender as lareiras do mosteiro... É apenas um ato de submentes religiosas. Imaginem-se, então, quantos originais foram queimados ao longo dos anos como buchas de lareiras... Lobegott, horrorizado, implorou aos monges que lhe dessem os manuscritos restantes, mas só conseguiu levar uma parte. Depois de nove anos, Tischendorf voltou ao mosteiro, mas não progrediu em nada. Na sua terceira viagem ao mosteiro de Santa Catarina, em 1859, patrocinada pelo Czar da Rússia, na busca por textos antigos da Bíblia, encontrou o valor maior que perseguia: o precioso Codex Sinaiticus – um manuscrito grego completo do Novo Testamento do século IV –, ainda com partes do Antigo Testamento! O códice, então, foi para as mãos de Alexander II, na Rússia, que o vendeu para o British Museum de Londres por cem mil libras esterlinas. Isso me lembra do filme Os caçadores da arca perdida...
A produção deixada por Lobegott foi importantíssima no campo do estudo textual das Escrituras e forneceu imensa fonte de pesquisa para os estudantes até os nossos dias. Legou-nos uma regra básica: “A busca de um texto só pode ser justificada por uma evidência antiga, especialmente a partir de um manuscrito grego, mas sem negligenciar os testemunhos das versões e dos Pais da Igreja”. No fim das contas, Tischendorf foi acusado pelos monges de ter roubado os manuscritos do mosteiro de Santa Catarina para enriquecer ilicitamente... Mas, por ter vivido no século dezenove, quando as Escrituras não eram questionadas, o pesquisador Lobegott ainda estava preso à credulidade e devoção cega nas tradições orais, base inequívoca da Bíblia: o “telefone sem fio”. Então, pensei um dia se meu tempo virara lixo.
Embora o século dezenove tenha colocado freio naqueles que vislumbravam o desmoronar do castelo bíblico devocional, muitos foram os homens de brilho que enfrentaram os tormentos da perseguição do clero para tornar a realidade evidente: a fraude nas cópias e a desconstrução da religião do Livro. Ainda que a maioria desses pesquisadores tenha ligações com a Igreja, homens devotos muitas vezes, alguns até clérigos, com o trabalho que realizaram, simplesmente abriram caminho para o método histórico-crítico. Deu-se o início da crítica textual da Bíblia como é interpretada hoje. Entre todos, dois deles contribuíram de maneira decisiva com a crítica textual moderna, pois seus métodos continuam vigendo até hoje. Foram Brooke Foss Westcott[46] e Fenton John Anthony Hort[47], pesquisadores da Universidade de Cambridge. A mais importante obra de suas vidas foi The New Testament in the original greek[48], publicado em 1881.
Westcott foi brilhante nas letras clássicas, destacando-se de tal forma que, ainda jovem, recebeu a nomeação de diretor da Westminster School. Depois da graduação pelo Trinity School, em 1849, foi ordenado diácono e iniciou uma longa amizade com Hort, que passou a assessorá-lo em suas pesquisas. Com um talento eclético, era músico e poeta, chegando a declarar que, se não tivesse sido ordenado para o ministério, seria arquiteto. Não ficou só na teologia – o desenho também era uma de suas paixões.
Westcott conseguia se dividir com maestria, mesmo sendo casado, entre as atividades clericais, como as literárias, a ponto de ser consagrado bispo. Depois, agraciado com o alto canonicato de Peterborough, recebeu diplomas honorários das universidades de Oxford e Edimburg. Como resultado de uma trajetória ímpar, foi nomeado Regente Professor da Divindade da Universidade de Cambridge. Dando prosseguimento às honrarias, Westcott recebeu da coroa britânica o canonicato na catedral de Westminster. Em 1890, foi nomeado bispo de Durham.
Hort, parceiro de trabalho de Westcott, também estudou no Trinity College e seguiram amigos por toda a vida. A publicação do seu trabalho do Novo Testamento no original grego, em parceria com Westcott, foi sucesso gigantesco com o público e nos meios acadêmicos.
O princípio adotado por Westcott e Hort foi semelhante ao de Johann Albrecht Bengel: “dividiram os manuscritos em famílias e se basearam fortemente no que classificaram de ‘texto neutro’, em que estava incluído o Códice Sinaítico e o Códice Vaticano, ambos do século IV d.C.”. Repare-se a ambiguidade de todas as pesquisas, que confiabilidade futura isto poderia ajudar as novas gerações?
Minha tentativa ao expor essas biografias dos editores-teólogos do Novo Testamento grego foi, tão somente, mostrar aos leitores as possibilidades de alteração dos textos bíblicos ao longo dos séculos, principalmente quando nas mãos de homens tão capazes de “brincar” com as palavras como uma criança brinca com a bola. Só que esses homens, ao achar que faziam a vontade de Deus, plantaram suas opiniões próprias no meio dos textos antigos, mas não levaram em conta que os cristãos dos séculos I, II e III já praticavam esse tipo de alteração textual, para “melhorar” o conteúdo das respectivas cópias anteriores... O homem, o inviável de um deus inviável.
O que de fato chegou às mãos dos nossos heróis editores, com o caminho aberto por Gutemberg, foram centenas de pergaminhos que eles imaginavam incólumes, mas haviam sido falsificados aos borbotões na Antiguidade... O homo sapiens é inviável em todos os sentidos, sobretudo nos valores morais.
Dos dogmas, contradições e fraudes
Por que algo é declarado santo e nós temos que aceitar o que nos impingem? Por que o Rig-Veda, o Shvetashvatara Upanixade, o Bhagavad Gita, o Corão, A Torah e o Novo Testamento são considerados livros santos que não podem ser refutados? Eles são diferentes, refletem realidades distintas e defendem pontos de vista absolutamente díspares... Qual deles é o verdadeiro? Por que, então, temos que aceitá-los? Porque são convencionados santos.
Mas de onde partem as convenções senão dos homens, que se organizam socialmente e estabelecem as normas a serem seguidas? A melhor maneira para compreendermos a organização social é lançar um olhar, ainda que breve, sobre a história. O sagrado, o santo, é uma ideia dos primórdios, que forneceu o arcabouço para os tijolos da religião. Essa coisa que o homem diz ser necessária à sua sobrevivência – a religião –, foi exatamente o que estabeleceu a possibilidade da civilização. Da forma que a compreendemos, ou seja, com o inquestionável cimento da hipocrisia.
Na Antiguidade, Idade-Média, Moderna e Contemporânea, a religião foi base da civilização, logo, viabilizou-a. No entanto, esses dogmas, doutrinas múltiplas e livros santos, começaram a ser profundamente questionados no presente século. Despercebidos, passamos por Darwin e, agora, revisitamos o gênio. A seleção natural nos dá as respostas para os becos sombrios da existência – da ilusão religiosa –, e nos convida a bater à porta da realidade. Reconstrua-se aquilo que é a única possibilidade de existir, sem olhar o que somos, mas o que está diante de nós: a vida presente.
Não se trata mais da possibilidade de civilização, porque isso já se foi, mas da possibilidade de perpetuar a civilização, salvando-a. É o exercício da prioridade da razão sobre a fé cega e a cooperação entre os homens, sem os desvios cognitivos do além-mundo.
Como é possível a idolatria de um livro de lendas antigas, contando a história de um povo eleito, sendo o livro adulterado a posteriori para apontar uma segunda alternativa salvacionista, uma vez que a primeira fracassara? Precisávamos disso. O judaísmo virou um velho de calças mofadas e nada melhor do que as inovações, com a chancela dos profetas antigos.
Se tais escrituras fossem deixadas por um ser onipotente, no mínimo, seria um ser atrapalhado, porque é isso o que nos aponta o método histórico-crítico. Um ser que se arrepende de coisas importantes que fez ou tem desvios comportamentais, reações desconcertantes, predileção pelo seu povo em nome da ágape ou furor santo, precisaria de ajuda médica... Que ser mais estranho, não? Mas isso não deixa dúvidas – à medida que os mitos desmoronam, caindo no desprezo do público, o álibi judeocristão pronuncia-se: “Não levemos a Bíblia tão ao pé da letra, o importante é a simbologia que está por trás das letras”... O galo cantou três vezes. Foi exatamente o que Richard Simon fez. Quando a “palavra” compromete, afastamo-nos dela para que a ameaça da crítica se dissipe. Ficamos mais soltos para os dogmas. Nada mais torpe do que esta saída pela tangente.
Fora da ordem cronológica, reuni alguns textos para comentá-los aleatoriamente, apenas com a preocupação de trazer à tona os desencontros bíblicos e suas escandalosas variações de desvios cognitivos. Por gostar tanto da expressão “desvios cognitivos” e por repeti-la tanto, peço desculpas, mas essa expressão é o que explica o presente livro! Para efeito dos comentários que seguem, priorizei a ordenação dos sentimentos filosóficos, da maneira como eles surgiram na minha vida. Na ordem gradual em que os questionamentos brotaram na minha mente, tornaram-se um incômodo, até que me pus a resolvê-los um por um, o que me bastou.
A única explicação que tenho para a confusão arqueológica, histórica, geográfica, filológica e teológica da Bíblia, é a maneira como tentaram “enfiar” tudo ali, com a finalidade de canonizá-la, às pressas, para que não fosse mais questionada. Como se isso solucionasse o problema: dar um jeito para arrumar a casa de qualquer maneira antes da chegada da visita... Foi pior a emenda do que o soneto, a casa começou a cair há longo tempo e isto para a vergonha dos hipócritas.
Ao encontrarmos uma crença que nos baste, envolvente e simpática, firmamo-nos nela. Abraçamos a crença e a reforçamos com pilhas de argumentos, de heurísticas próprias, para conferir autoridade às mesmas. Intuição pura, achismo total. Juntamos uma porção de bobagens cognitivas para confirmar nossas crenças. Se tivermos honestidade de analisá-las, veremos que estão construídas em cima de baboseiras ou mentiras que engolimos. Ainda fingimos com nossos disfarces e mantemos os olhos semicerrados por medo da verdade... É o que somos. Algo que não deveria ser, mas evoluímos para nada acima disso. Deveríamos sentir vergonha, se não de nós mesmos, pelo menos daqueles que nos são caros.
Aos absurdos das escrituras. Um caso que me intriga: se Deus é o pai de Jesus, que não veio do sêmen de José, por que traçar em Mateus e Lucas as genealogias de Jesus? Se Cristo não tem laço consanguíneo com José, como pode pertencer à raiz de Davi? De Maria nada, nenhuma genealogia. A genealogia de Mateus passa de forma retroativa pelo rei Davi até chegar a Abrahão! Lucas retroage mais ainda, chega a Adão... Acharam que fôssemos burros para engolir essa rapadura cognitiva açucarada e milenar? Óbvio que não. Apenas não imaginaram que essa ideia pudesse atravessar tantos séculos. Escreveram para as hordas antigas da Judeia. Não previram que a humanidade levaria essas histórias tão a sério. Pior que as lendas viraram uma coisa que pegou.
Mas que Adão é esse? Em que período homo ele se encaixa, para retroagir até aos australopithecus? Vamos fazer de conta que a Bíblia não tenha sido canonizada, que ninguém jamais tenha dito que ela é a “palavra de Deus”. Certo? Muito bem. Qual de vocês leitores, com honestidade, não acharia tudo aquilo uma imensa baboseira? É exatamente esse negócio de santo, essa mágica amedrontadora sagrada que faz com que essas coisas não tomem lugar em nossas mentes com nenhum tipo de questionamento. Bem estranho, não? Parece mais uma conivência acomodativa universal. Não se discute nada de “sagrado”... Exclusivamente por medo. Mas medo de que? De ser excomungado pela Igreja de Roma? De ser excluído da comunidade evangélica? Ou de ser laçado pelo Diabo? Ah... Acho que é isso. São as maldições e ameaças “igrejísticas”. Isso é coisa dos tempos da bruxaria. Ninguém é amaldiçoado, principalmente quando se busca a verdade!
Mitos não têm poder de amaldiçoar ninguém. Esses são os verdadeiros fantasmas: nossos medos. Quer dizer que vou perder o emprego, ou ficar doente, ou ser assaltado, por que não creio num nascimento virginal? Por amor de santa Radegunda, protetora dos ingênuos! Vamos acordar para o século em que vivemos, pois temos a responsabilidade social de adquirir um mínimo de cultura que nos diferencie do cristianismo medieval. Não estamos mais nessa época de fogueiras e superstições.
É melhor sairmos das genealogias de vez para outras coisas mais curiosas. Na época de Jesus, os cristãos começaram a esperar pelo reino prometido aqui na terra. Os contemporâneos de Cristo esperaram pela vinda do reino naquela época para nada. Quando Cristo teria subido aos céus, os discípulos aguardavam com toda a certeza do mundo a chegada iminente do reino. E nada. O apóstolo Paulo esperava o advento ainda em vida, mas acabou morrendo e nada de reino. Mas e agora? As boas novas da vinda do reino para aquela geração caíram no descrédito – e é natural, não acham?
Então, explicações foram criadas. Pedro teria dito que o tempo de Deus não é o mesmo do homem, ao lembrar que “para Deus um dia é como mil anos e mil anos como um dia”... Saída genial para os antigos, mas fraca para hoje. As coisas mudaram e todos se calaram. Porém, não no fundo... As dúvidas ficaram e os líderes da Igreja, responsáveis pelas anestesias a serem aplicadas, vieram com novas interpretações. Abstraíram a visão imediatista do Reino. Inventaram uma história mais elástica: a ressurreição futura, com direito a alma, céu e inferno. Quer dizer, agora o reino era chegado individualmente com o fim da vida de cada devoto... Tudo, assim, foi recontextualizado.
Não era mais uma questão de duas épocas diferentes: uma antes da chegada do reino na Terra e a outra depois da chegada. Agora, o contexto é vertical: ficarmos aqui por enquanto, até morrermos e subirmos para algum outro lugar cheio de coisas gostosas. Um lugar com Deus. Logicamente, se o troço é vertical, o inferno fica lá em baixo. Embaixo de que? Do tapete? Dizem por aí que o inferno é aqui e no fundo sabemos disso.
O apocalipsismo legou-nos esse conceito conveniente de céu e inferno, pois a Torah não tratava dessas histórias e, digo mais, nem os textos cristãos mais primitivos! Essa doutrina de céu e inferno teve que ser encorpada como um mingau de maisena. Justo porque não “veio” qualquer reino no início do cristianismo, então, mais tarde, incorporaram aos discursos de Jesus o “meu reino não é desse mundo”... Cada século, assim, inventava uma vinda de Jesus, até que o próprio Miller subiu com a sua tropa nos telhados, em pleno século dezenove, para esperar um Jesus voador, que acabou alterando seu itinerário de voo para outro planeta...
É por isso que sempre me bato nas cognições desviantes, pois nunca percebemos quando nos assaltam e, então, buscamos significados em coisas que não existem. Acho pertinente repisar que nossos neurônios pedem coalizões na busca de irmãos que tenham uma linha de pensamento similar para fortalecer a já citada inferência paradigmal injuntiva. Quando queremos reforçar, a qualquer preço, as crenças que adquirimos, demonizamos as crenças dos nossos desiguais. Que loucos somos! A invenção do cristianismo se deu dessa forma: construindo o Cristo doutrinariamente, passo a passo, através de novas histórias registradas em seguida... Isso é lógico, significa a geração de novos dogmas! Para cada episódio do mito admitido, com cautela, meticulosidade e muita prudência, um novo tijolo na construção de um personagem eterno. Deu certo? Vamos em frente. Assim foi a briga inicial, que acabou nas mãos dos proto-ortodoxos. Eles ditavam a moda em Roma e eram os formadores de opinião da Antiguidade. Seguramente, situavam-se na esfera política, pois buscaram coalizões espaços na cloaca.
Temos o dom, desde o nascimento, de desenvolver a capacidade de “ver” coisas e encontrar modelos significantes no ar. Porém, por que tudo precisa ter significado? Que estranho. Quem insiste em dizer que tudo tem significado? Só os que têm interesse na construção dos devaneios religiosos. Por que não sermos felizes sem significado? Drummond disse que “Ser feliz sem motivo é a mais autêntica forma de felicidade”... Por que Deus precisa inspirar alguém até para fazer um bom café ou inventar coisas para nos infelicitar?
No Evangelho de Marcos 9:1; 13:30, Cristo nos dá a entender que o fim estaria próximo, com a iminente vinda do Filho do Homem para julgar a humanidade, quando seus discípulos ainda viviam. Então, nada de vinda do reino e os discípulos já estavam quase todos mortos sem terem contemplado a chegada do que fora anteriormente anunciado. Mas como nenhum dos discípulos que deram nome aos quatro evangelhos foram os seus autores de fato, os anônimos, escritores originais dos evangelhos, capricharam no último, o de João, mais ou menos em 95 d.C. Foram, desse jeito, obrigados a recontextualizar a teologia da vinda do reino, criando o que já mencionamos antes. Que decepção. O cristianismo, aliás, é uma coleção de decepções ocultas, abafadas, sufocadas, pois não temos coragem de admiti-las em público.
O silêncio de Deus! Isso aconteceu comigo durante a vida. Senti o silêncio, mas não queria admitir. Preferi a teimosia da fé. Não abri o coração para o próximo. Achei que pudesse ser visto como “homem de Deus”, mas não passava de um idiota, ignorando a riqueza de outros universos. Aterrorizava-me o fato de pensar que poderia estar equivocado! Admiti sem reflexão nem julgamento as histórias absurdas da religião e fingi que não via as mentiras que me falavam sobre a fé. Quando fé, na verdade, é o próprio ato de iludir a si mesmo... Se a fé não concorda com a realidade, achando que um ser sobrenatural qualquer vai alterar a ordem do universo em nosso benefício, das quatro hipóteses, uma: ou somos egoístas extremos, ou a fé é uma impostura, ou somos idiotas completos, ou este ser sobrenatural é o maior embromador da história.
No passado, interpretei os obstáculos da vida como provação de Deus... A cada decepção, considerava-me culpado pela falta de fé, já que parecia com punição. E a mente adoeceu... Isto é universal. Somos falsos de pedra! Temos medo de explodir num desabafo que nos faria muito bem. Libertar-nos-ia. Humanos finalmente, ainda que sempre demasiado humanos. Mas não, nunca dar o braço a torcer. Não damos o braço a torcer, por isso somos religiosos! Preferimos segurar a máscara, manter uma palavra na boca e outra no coração. Lógico, pois temos uma imagem perante a família, perante a comunidade que frequentamos e pelas mentiras que sustentamos no dia a dia. Pelo compromisso com o palco em que subimos para representar nosso triste papel religioso. Fingi tanto, que cansei. Por isso, fiquei feliz e escapei da escuridão para ser um “desigrejado” cheio de alegria. Aí, joguei as correntes no lixo. Mas, óbvio que o preço por tal decisão é muito alto.
O Evangelho de João desfaz o dualismo horizontal, temporal, que situava a chegada do reino aqui na terra, conforme o cristianismo primevo, para propor um dualismo vertical, espacial, ao reforçar um lugar acima e outro abaixo, com nova proposta, totalmente individualizada. Agora, no contexto reformulado, o reino certamente vai chegar para aqueles que foram premiados com o céu ou, que pena, jamais chegará para aqueles que foram selados para o inferno.
Infelizmente, nenhum dos discípulos escreveu nada. Foi tudo pseudoepigrafado[49]. Eram escritores anônimos, que “precisaram” usar os nomes dos apóstolos em busca de credibilidade. Isso desaponta profundamente os crédulos, entretanto, os livros da Bíblia são pseudoepigráficos, obras atribuídas a quem não as escreveu. O problema é que se torna difícil que um crente abra o entendimento para tal coisa, pois suas crenças não se baseiam em evidências, baseiam-se numa profunda teimosia em acreditar em fantasias, resistindo a qualquer tipo de prova histórica. Ainda se orgulham em dizer que as coisas adquiridas pela fé jamais serão destruídas pela razão... Que espetáculo de pobreza intelectual!
É por isso que não me canso de afirmar o porquê do meu abandono da fé religiosa que, para mim, representa um problema cultural. Enquanto vivi por anos a fio, envolvido com igrejas, aceitei a estupidez e falta de coerência dos irmãozinhos em nome da humildade. Mas, se de fato existisse um deus conforme os moldes pregados pela dogmática, ele seria o pai dos incoerentes, responsável pela proliferação da miopia cognitiva no mundo. Cheguei, então, a um ponto de não mais suportar tanta besteira e, para não magoar as pessoas por causa das minhas convicções, percebi que poderia ajudá-las muito mais deixando a estrutura retrógrada da Igreja. Embora essa mesma Igreja sustente um exército de artrópodes venais e fantoches fideístas, embroma os que têm alguma sede de cultura, mas a cultura de fundo de quintal é mais do que suficiente para os fiéis.
A liderança sacripanta prega ao povo detritos de ciência com um pouco de sociologia capenga, uma psicologia de sexta classe, física nem é preciso, pois não sabem o que é isso, pensam que é uma forma de ginástica... Esses líderes dão umas doses de literatura de comadre e poesia que contenha as palavras “flor e mãe”, alguns toques de otimismo – o que já basta. Geralmente, são pastores dolosos, vistos pelo povo humilde como sumidades intelectuais e donos de palavras irrefutáveis. Sobretudo, quando se reafirmam “imperfeitos como qualquer um e que o Senhor realmente é tudo em nós”... Aí sim, vem o delírio da turma de aprendizes, mas continuam a venerar o pastor, ou a um liderzelho qualquer. O povo gosta – precisa de pão e circo. Os falsos profetas, torpes que são, simulam submissão integral a Deus, mas bajulam os contribuintes que amam e sugam as ovelhas, que desprezam. É preciso cabresto bem dosado, chibata, amor de púlpito e extorsão. Em nome de Deus e do absurdo. Certa vez cobrei a um promotor sobre esses vigaristas, ao que ele me respondeu: “Fazer o quê? O povo gosta mesmo é de ser enganado”.
Lembro-me da compreensão dos antigos sobre a luz. Eles achavam que a luz era difusa, não vinha do sol – era impregnada como algo derramado que se espalhava na atmosfera. Quem escreveu o Gênesis também partilhava desse princípio, pois na sua narrativa, o sol fora criado quatro dias depois da luz... Como aquelas bestas iniciais poderiam deduzir a existência de uma manhã e uma tarde sem o sol? O que é a fé senão querer descobrir o que é a verdade? Fica difícil, mesmo para um infante, que um ser superior, hipoteticamente, tenha-nos provido de inteligência, razão e bom senso, proibindo-nos de usá-los.
Ainda falando em luminescência, já que tocamos na “criação” do sol depois de quatro dias, quando existia uma luz difusa sobre a terra, faço um comentário particular sobre os astros: a estrela de Belém. Os magos do Oriente teriam se guiado supostamente por uma estrela até a gruta onde Jesus nascera. Imaginemos a distância de uma estrela para a Terra – milhões de anos-luz. Como esse negócio vai pairar sobre Jerusalém ou, mesmo, sobre uma gruta? Estranho. Que angulação dúbia é essa? Uma estrela que os magos acompanham e que tem a velocidade de um camelo na areia? Uma estrela jamais poderia “pairar” sobre uma gruta, a menos que descesse do céu e ficasse a alguns metros do seu alvo. Uma estrela pode pairar sobre um hemisfério inteiro até onde um ângulo estabelecido pela Física permitir... Chega de astrologia bíblica. Isso é mais uma prova de que toda essa linguagem só poderia ser usada por gente tosca da Antiguidade.
Um conjunto de processos de cognição convence os crédulos sobre a estrela, fortalecendo a crença da orientação divina para os magos, gerando o pior sentimento: a confiança emocional, que é o desastre consumado do desvio cognitivo. Esses sistemas de crença são tão poderosos que penetram em nosso sensorial e isso pode durar a vida inteira, a menos que haja a fortuna de um momento de reflexão profunda, libertando-nos. Quanto mais praticamos os elementos da fé mais obscuros e isolados nos tornamos.
A Bíblia contém milhares de mentiras, pois foi escrita pelos homens e eles mentem por força da sua própria natureza. O homem santo, perfeito, imagem e semelhança de Deus é um modelo que jamais existiu. É uma construção da própria religião – um blefe. O homem autêntico, natural, é apenas um animal que conserva a racionalidade num plano muito restrito, por tempos reduzidos, sempre com prioridade instintiva à sua baixa origem. O homem é uma alimária disfarçada e contida pelo processo social, monstro fazedor de livros mentirosos para obter vantagens.
Como disse anteriormente, passei minha vida a acreditar na ilusão religiosa. Talvez por ter seguido uma carreira ligada às artes visuais, isso tenha contribuído com a possibilidade do sonho. Acreditei que essas coisas poderiam conter fundamentos sólidos. Acontece que é muito comum aos artistas de todas as escolas, que navegam pelos mares da fantasia, atolarem-se na lama da ilusão religiosa, pois a própria natureza da arte, da criação, margeia esses mares. A própria religião é um sonho multicolorido, que oferece esperanças fofas e os sonhadores são as vítimas dos desvios das fés oferecidas pelo caminho.
O clero se abriga na teia, manso, esperando as vítimas do voo ingênuo. Assim, caí em várias teias sedutoras, mas consegui sair de todas elas. Meu voo hoje não é de um mosquito indefeso – é de um falcão raptor! O falcão enxerga ao longe, tem uma direção: um voo limpo e fatal pela sua prole. Já o clero é como a aranha, fica na teia, na sua casinha que tem a cúpula com cruz no topo. Ali, dogmatiza e suga as vítimas incautas. Confesso que já me sinto cansado ao escrever sobre essas confusões divinas.
No início da caminhada cristã, a Bíblia significava a palavra de Deus para mim de forma total. Como não via contradições, ficou tudo fácil de ser entendido e explicado: uma cartilha de ensino fundamental. Para mim, o mundo clareou de vez. Tudo lindo, só passarinhos e borboletas... Ignorava o completo ingênuo que era. Mas chegou o tempo em que a cortina caiu e comecei a perceber as centenas de erros contidos na Bíblia. Isso foi na época dos bancos acadêmicos das faculdades que frequentara, quando resolvi criar coragem e admitir o peso da razão. Reaprendi a pensar. Muito penoso, um cravo na alma, mas aprendi a discernir a ameaça dos desvios cognitivos religiosos. No princípio era o terror, depois um medo natural e, por fim, a vitória contra a estupidez, a cegueira cognitiva que aleija os homens, impedindo-os de viver o pouco que existe por aqui. Único motivo de felicidade, o mais é nos iludirmos.
Descobri assim, pelo método histórico-crítico, as datas que não combinavam entre si, as genealogias truncadas, desequilíbrios e fantasias absurdamente infantis, forjadas para a massa ignara, com uma bagagem imensa de fatos anacrônicos, na tentativa de manter o povo fossilizado na incultura. Mas é de fácil percepção: na Antiguidade, o instinto de passar o outro para trás era o mesmo de hoje. A falta de escrúpulo com falsificações religiosas era idêntica a dos nossos dias. Os pastores de túnica também eram os mesmos que usam terno e Internet hoje. Parece até o giro do devir de Hegel: tese, antítese e síntese.
Pesquisadores da teologia contemporânea tentam arrefecer a carga de culpa dos falsificadores do passado, mas se as falsificações não tivessem um cunho tão pleno de má-fé, por que aqueles que eram capturados pagavam as penas mais pesadas pelos atos ilícitos de falsificação? Justamente, porque ninguém, em nenhuma época, aceitou ser enganado sem a fantasia adequada e necessária.
No mundo antigo, a pseudoepigrafia[50] não era tão criticada, porque os líderes cristãos admitiam a necessidade da construção dos fundamentos proto-ortodoxos, que seriam os pilares textuais destinados à perpetuação teocrática. Parece que eles pressentiram isso e tomaram como missão admissível a pseudoepigrafia. A finalidade era usar os nomes dos discípulos de Jesus como meio de conferir autoridade aos textos que se destinavam à canonização... Do contrário, se forjassem a autoria de Ariovaldo, Josivaldo ou Florisvaldo, o povo desprezaria. Era necessário ter o nome dos discípulos! Os profetas cristãos diziam-se inspirados por Deus, tinham fé pública, não eram questionados, logo, contavam suas “abobrinhas” à vontade e a massa acreditava em tudo. Afinal de contas, era o Espírito Santo. Na boca dos profetas, os copistas da Bíblia já colocavam as palavras: “Assim diz o Senhor”, ou “assim diz o Espírito”. Primeiro faziam os ignorantes tremer, pois achavam que as palavras vinham mesmo dos profetas e, depois do campo emocional preparado, despejavam os recados do além.
Até hoje os ingênuos repetem que Deus cuida dos seus filhos, mas não param de encher os bolsos dos oráculos de púlpitos pós-modernos. O crente gosta de pagar pela salvação. Os charlatães da fé, então, se aproveitam dos ingênuos dadivosos e continuam a usar os discursos marotos milenares para atender às necessidades espirituais das massas broncas. Na verdade, usurpam o dinheiro dos pobre-coitados úteis. Ao exaltarem o coitadismo plantado nas vítimas.
O povo não pensa, nem reflete sobre o que é dito com base científica. Simplesmente, fecha os olhos – não está preocupado em comprovações por vias da razão, pois simplesmente o “pior cego é o que se recusa a ver”... Nem sequer discute, porque, na realidade, não tem firmeza naquilo que diz crer. Se de fato cresse, preocupar-se-ia com o destino da própria alma, no mínimo. Povo indolente, preguiçoso mental, que recusa o saber, salvo raras exceções.
A maior parte de tudo registrado no Novo Testamento foi escrito por pessoas que não sabemos os nomes. Mas o tempo passou e a necessidade de saber esses nomes misteriosos provocou a curiosidade no povo. Então, às autorias: escolheram Mateus, Marcos, Lucas, João e outros mais... Continuaram a brincadeira, escolhendo, aqui e ali, até fechar o pacote. As regras básicas eram: a apostolicidade – o livro deveria ser escrito por um apóstolo ou companheiro do mesmo; a ortodoxia – era preciso avaliar o peso da proto-ortodoxidade no contexto geral do livro –, a genuína doutrina dos mesmos; a antiguidade – os livros deveriam ser escritos na época da existência de Cristo, mas o negócio é que ninguém achou esses originais até hoje. Ficou tudo na base das cópias, das cópias, das cópias, em suma, do “ôba-ôba”... É isso mesmo, exatamente porque ficou tudo na base dos encaixes em conceitos preconcebidos! A crença precisa ser confirmada, senão o clero se descontrola! Meus queridos leitores atentem para isso: eles precisam nos colocar nos trilhos tortos dos desvios cognitivos. Como? Tentam, de todas as formas, trabalhar as informações que chegam aos nossos sentidos para distorcê-las, afastando-nos do real para nos oferecerem na bandeja o mundo que sonhamos. O mundo como deveria ser, segundo os nossos sonhos – a produção do conformismo sufocado pelas fábulas eclesiásticas. Aí, eles conseguem cometer o crime nas nossas mentes, entopem-nos de motivos subjetivos, emocionais, psicológicos, passionais e sociais! São os clérigos suplentes do Mal, que se empenham em mudar as mentes sãs e formar exércitos de robôs perpétuos e fossilizados.
Isto é a confirmação emocional da crença em qualquer coisa. Repito, pela extrema importância desse modelo: a confirmação emocional. A coisa mais perigosa e traiçoeira para o equilíbrio psicológico humano – a emoção associada à fé. Este é o mecanismo do fosso fideísta! Meu princípio, que insisto em rebater: a inferência paradigmal injuntiva, ou seja, a tão conhecida “lavagem cerebral”! Mas, se eu fosse Deus, já teria processado todos por usurpar meus direitos autorais das traduções.
Vale a experiência da análise enquanto há tempo. Para um velho devoto, o resgate do encarceramento religioso é quase impossível. Ele não tem mais forças mentais para perceber a prisão em que se encontra, porque também representa uma zona de conforto para ele, portanto, é cômodo. Mas também é vítima de um processo mental demonizante, que o aliena talvez para o resto da vida.
O viciado na crença, devoto profissional, encontra-se fraco demais para resistir à “confirmação emocional” de uma crença qualquer. Se você comete um crime de lesão corporal, vai preso. Mas se um clérigo, ostentando as vestes sacerdotais, comete um ato de lesão espiritual contra uma mente pura e ingênua, que não tenha meios intelectuais de defesa, nada acontece. Pior é que essa mente pode carregar para sempre as sequelas dos traumas espirituais causados pela religião. Esses danos à psiqué, promovidos pela religião, são indubitavelmente irreversíveis. O sacerdote tem licença para matar a alma, a alegria e a esperança. Tudo em nome do dogma ofertado pela instituição.
Tenho assistido na vida as piores covardias com os símplices. Ninguém os defende. A “cura” que lhes dão não é opção: enfiam os quilos de lama doutrinária pela goela abaixo, para que fiquem cada vez mais fortes na fé da sua própria instituição, é claro. Têm uns que deixam os filhos morrerem num leito de hospital, porque criaram um deus doloso e atrofiado que os proíbe de receberem transfusão de sangue, enquanto outros tontos comentam que Jesus derramou na cruz o sangue pela humanidade.
Na fé pentecostalista, metodista, presbiteriana, batista, católica, espiritualista e mais os istas faltantes, vigoram as mesmas técnicas de ensaboada cerebral em favor da “doutrina certa” durante um tempo. Mas, por ignorantes que sejam as multidões de vítimas da fé, elas estão, pouco a pouco, percebendo o conto do vigário que lhes foi imposto através de séculos, milênios. Sabem por quê? Porque vai chegar o momento de não suportarem mais o silêncio de Deus! Vão cair na realidade de que somos apenas nós que podemos fazer alguma coisa para mudar a vida e que as vozes do além nunca passaram de contos infantis. E tal cegueira do povo é que tento entender até hoje.
Escritos eram atribuídos a autores importantes da Bíblia para conferir autoridade e aura de santidade aos mesmos. Assim como escritos anônimos de menor importância receberam a posteriori o nível canônico e passaram a figurar na Bíblia. Paulo, por exemplo, não escreveu o livro de Hebreus, que foi um texto anônimo canonizado pelos pais da Igreja. As epístolas de João I, II, III, não foram escritas pelo mesmo, mas sim em grego, por cristãos posteriores. Hoje, esses pontos propõem um novo entendimento.
Era preciso, porém, que tudo isso fosse atribuído a um apóstolo e, até mesmo, o quarto evangelho, o de João, filho de Zebedeu. As cartas de I e II Timóteo, jamais foram escritas por Paulo, foi apenas uma criação consensual dos antigos. Sem rodeios, podemos dizer que eram criações duvidosas pertencentes a um mundo de falsificações, embustes, ilusões, na preparação de um futuro com religião e políticas sólidas –, o império romano idealizado a partir do gênio de Constantino. Na canonização do Livro o que deu certo permaneceu. O que não deu, ficou de fora. Surgiu, então, o conceito de heresia, pois ao falarmos de padrões, geramos outros. Com a heresia como ideia ficou maior o controle social pelas fés.
Na vida quase tudo é forjado – relativo. Nós é que temos dificuldade para aceitar esse princípio e o vemos como o pior dos escândalos. A razão é porque o absoluto não existe. O absoluto é um conceito que formamos como âncora geral. É só encarar um fato inconteste: qualquer ato de fé significa desprezo à verdade científica, portanto, a vida tem que acontecer de fato e não como a idealizamos, com as nossas esperanças infantis. Isto é uma profunda verdade, pois todos os ingênuos que defendem a fé religiosa têm extrema dificuldade de encarar a verdade ôntica-deôntica, o mundo como ele é, por medo absoluto de se achar um desviado da fé.
Na visão racional e científica a fé não muda nada, pois, se um deus pessoal existisse, ele teria que mudar as leis da natureza para atender você a cada instante. Por que ele faria isso? Para responder às coisas mais estúpidas ou do interesse pessoal dos bilhões de cegos mentais que povoam o planeta? Será que um ser supremo tão sábio e poderoso agiria dessa forma? Que tipo de justiça natural seria essa? A resposta é sempre a mesma para justificar a vaidade dos deuses e humilhar os humanos: o amor divino. Tolos são os que se fiam na enxurrada dolosa das religiões, que se enraizou durante a história.
O homem intelectualizado afirma que a fé é um subproduto do pensamento. Em contraposto, o clero precisa adiar a monumental decepção que um dia ficará bem clara para cada um de nós. A fé nos molda para não entendermos o mundo e nos oculta os obstáculos que temos que enfrentar, deixando nas mãos do além o resultado que vier. A fé justifica qualquer resultado que a vida nos apresente. Temos, então, que nos conformar. É porque Deus quis desse ou daquele jeito. Um ser superior permitiu as guerras, as doenças e os desastres por que somos maus? Ou porque nos submete às provações, por um amor que não entendemos... Não é nada disso! Nem uma coisa nem outra. É a natureza que estabelece seus feitos e ela não é boa nem má. Ela é apenas a realidade bruta em evolução, através do processo adaptativo e aleatório. Assim, os coelhinhos estarão sempre na boca da raposa.
Conhecemos tudo o que há na Bíblia. Jamais surgirá um louco qualquer que tente modificar o que lá está há séculos, muito bem canonizado. Segundo o que foi discorrido, nas batalhas iniciais do cristianismo, política pura, para ver quem venceria a disputa da inserção dos “textos certos” na Bíblia, muitos escritos ficaram de fora. Mas eles existiram e, na época, estavam em igualdade de direitos futuros para serem canonizados. Era uma concorrência de tendências, uma guerra de conceitos. É preciso que se compreenda que, no início do cristianismo, esses conceitos não eram vistos como heresias do jeito que os vemos hoje. Foram muitos os livros: A epístola dos apóstolos; O evangelho dos egípcios; O evangelho dos ebionitas; O evangelho dos hebreus; O evangelho dos nazarenos; O evangelho de Maria; O evangelho de Pedro; O evangelho do salvador; O pastor de Hermas; O evangelho da verdade; O livro secreto de João; O evangelho de Tiago; O hino da pérola; Os atos de João; Os atos de Pilatos; Os atos de Pedro; Os atos de Paulo; Os atos de Paulo e Tecla; Os atos de Tomé; Carta aos laodicenses; Epístola de Barnabé; II Clemente; III coríntios; Apocalipse de Pedro; Correspondência de Paulo e Sêneca; Evangelho de Nicodemos e muitos outros. Entretanto, o público religioso precisa saber como, quando e porque, esses livros não mereceram fazer parte da Bíblia. O motivo foi porque o grupo político mais robustecido de Roma, o proto-ortodoxo, não os considerou suficientemente inspirados por Deus. Também por não terem sido encontrados vestígios das mãos dos apóstolos. Houve coerência nas escolhas? Ou desconfiavam que esses evangelhos fossem falsificados? E eram mesmo, os pesquisadores são unânimes em afirmar. Ou, quem sabe, pelo critério “bem me quer, mal me quer”?...
Sem dúvida, o cristianismo foi o movimento mais espetacular da história. Há muitos tipos de tendências políticas, preocupações, objetivos, finalidades, aplicações caritativas e doutrinas dentro dos cristianismos. Foi o que disse – cristianismos. Sim, pois mesmo com a Bíblia “resolvida”, no que tange à própria canonização, sempre existiu um impulso oculto para o desdobramento e diversificação, cada vez maiores, das possibilidades dogmáticas das Escrituras. Existem vinte e sete livros no Novo Testamento, mas é como se fossem cinco mil e vinte e sete, dadas as possibilidades de articulação inventiva. O resultado é o que se vê: a fabricação de novidades eclesiásticas no curso da própria história.
Observemos a multiplicação das religiões no mundo de hoje. Não mudam nas intenções, mas produzem efeitos transformativos que conduzem o povo através de ventos doutrinários sedutores, de acordo com as bruscas variações e necessidades sociais. Expressão da ânsia pela moda fugaz e suas mudanças levianas...
Sobre esses evangelhos e escrituras apócrifas são muitas as histórias. Os antigos declaram que o próprio Tiago, irmão de Jesus, escrevera as baboseiras do evangelho que assume a autoria. Disse até, que Maria, sua mãe, teria continuado virgem mesmo depois do parto de Jesus. Por isso, o mito da Virgo intacta.
Na religião, quanto mais loucura melhor – mais fácil de crer. As epístolas de Tito e de Timóteo I e II, segundo a maioria dos especialistas, foram escritas muito depois da morte de Paulo, que supostamente seria o autor das cartas. O mesmo acontece com II Tessalonicenses, os pesquisadores negam a autoria de Paulo. A maioria dos estudiosos também nega que II Pedro seja de autoria do próprio apóstolo, o que desestabiliza qualquer cristão.
Um detalhe merece reflexão: é que não estamos falando agora dos evangelhos apócrifos aqui descritos, mas dos livros que fazem parte da Bíblia. Mesmo os livros canônicos têm obtido um foco suspeito nos últimos tempos –, uma vez que vieram à tona fatos vergonhosamente mitológicos dentro das Escrituras. Falo da Bíblia mesmo, o livro que as pessoas defendem e carregam debaixo do braço, sem terem consciência da sua historicidade, depois que o método crítico-bíblico passou a chamar a atenção do mundo.
A Bíblia, que não é mais respeitada como nos séculos anteriores, perde terreno no campo da razão rapidamente quando é aplicado um exame histórico-crítico no corpo do seu texto. Mais parece uma coletânea contos de fadas. Quando, entretanto, fechamos os olhos para a realidade, as Escrituras assumem os ares do Monte Sinai. Um livro santo envolto em fumaça branca. Só que o mito de “palavra de Deus” se mantém apenas entre os fiéis de cultura mais acanhada, pálida mesmo. Como as pessoas, no processo de globalização, acumulam toneladas de informações em todos os níveis, em pouco tempo a Bíblia será apenas uma recordação de épocas obscuras, um livro de péssima construção literária, que nos remete aos tempos mais atrasados da história humana.
A formidável estratégia, a tática espetacular, usada por mentes criativas ao longo de milênios, construiu a Bíblia! Sobre a pessoa e divindade de Jesus, temos um caso típico de construção dogmática gradual, uma sondagem especulativa do povo, por séculos, para chegar ao passo final rumo à canonicidade... Tudo começa com a ideia de um messias adaptado ao cristianismo. Houve a distorção do messias judaico, que já não convencia muito pela sua demora em chegar ao mundo. Até porque, a compreensão do povo mudou: era preciso um messias mais democrático e popular. Chegara o momento histórico de um messias dos pobres e de um evento populista bem ajustado. A ideia, assim, foi absorvida pelos judeus apocalipsistas, uma vez que não se sentiam amarrados ao fundamentalismo. Os cristãos, então, ficaram senhores da situação.
De quando em quando, a história articula as suas mudanças. De estalo, brota o conceito de inseminação divina e nascimento virginal, que deu certo. Quem não gostaria de um deus passeando por aqui? A ideia logo se assentou. O menino cresceu e, segundo os textos, deu uma demonstração vibrante de sabedoria no meio dos doutores do Templo. Então, veio o início ministerial com as revelações, parábolas formatadas para os de parco esclarecimento e propostas salvacionistas inteiramente novas. Essa ideia de um ministério eclético também foi amplamente admitida e, perseguida por razões políticas, só serviu para fortalecer a visão da massa inculta. Para isso, é necessária a construção gradual de princípios que sejam admitidos como plausíveis.
Todos os relatos descreviam um notável elenco de eventos de abundante miraculosidade, com os textos já familiares, atribuídos aos apóstolos. Tudo se “encaixou” nos planos divinos. Na sequência de fatos teocráticos, houve um batismo diferente, confirmando o ministério. Ressurreições e promessas futuras que nenhuma outra religião oferecera até então. Verdade. O cristianismo é campeão em esperança, justamente pela natureza dogmática da renúncia ao mundo. A vida por aqui não interessa, nem a sua ocupação profissional. O clero não se interessa pelo que você faz, mas pelo que você paga. Importa mesmo o investimento na Eternidade.
Depois, despontou o dogma da Trindade, já que o Filho não retornou nos tempos apostólicos, uma recontextualização se impôs onde coubesse a doutrina trinitária, o que foi bem aceito. Encaixou como uma luva na cristandade, embora, até hoje, nem todos os cristãos sejam partidários de doutrina tão fantástica. Entretanto, o mais sensacional foi a mulher menos significativa do cristianismo, Maria Madalena, fincar o marco teológico inicial: a descoberta do túmulo vazio! Pronto. Tudo foi para o lugar e a maior das religiões começou a se desdobrar em profusão. Maria Madalena endossou o início do cristianismo com o túmulo vazio, assim como a lenda da criação, que se baseia num casal imaginário, endossa o início do judaísmo. Sempre desconfiei das passagens bíblicas que fazem menção a Adão e Eva, apenas por se tratar da explicação mais pré-cambriana do Gênesis... Uma lenda cabível apenas nas mentes dos pigmeus religiosos.
Há suspeita de que I Timóteo 2:12-15 não tenha sido escrita por Paulo, pois um apóstolo, presumivelmente, não repetiria fantasias da Antiguidade como essa: “Não permito que a mulher ensine nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. E Adão não foi enganado, mas a mulher foi enganada e caiu em transgressão. Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecer na fé, na caridade e na santificação, com moderação”. Em primeiro lugar, prevalece a misoginia, em segundo, uma compreensão que já foi esmagada desde o século XIX – a do casal do Éden... Não existiu nenhum primeiro casal gerador da humanidade inteira. Existiram, em concomitância, sobre toda a Terra, australopithecus que se reproduziram aos milhões. Na Pré-história, hordas de bárbaros seguiram na reprodução, ao tempo que mantinham características raciais, regionais e biológicas próprias. Isso porque, há mais de quatro milhões de anos, seus antepassados, do ramo australopithecus, já caminhavam evolutivamente para o gênero homo.
Continuando com a análise das estranhezas bíblicas, observe-se que os quatro Evangelhos canônicos, além de termos afirmado que são todos anônimos, apenas levando na fachada o nome dos apóstolos, nenhum deles contêm qualquer narrativa na primeira pessoa, o que remove por completo a autoridade no discurso de qualquer homem importante... O que mais pesa na bandeja das dúvidas é que os discípulos, que andavam com Jesus, mal sabiam falar hebraico, aramaico e tampouco escrever os próprios nomes. Eram todos analfabetos. O Novo Testamento foi escrito trezentos anos depois desses homens rudes, que eram trabalhadores braçais e pescadores, andarem com Jesus, conforme as lendas bíblicas...
As primeiras cópias que temos do Novo Testamento são todas escritas num grego culto e impecável. Pedro nunca soube a forma de uma letra grega. Os cristianismos não foram criados apenas por centenas de pessoas, mas por milhares delas, ao longo de séculos, com muitas tendências possíveis e imagináveis, por miríades de indivíduos venais, disfarçados de santos, invariavelmente com a mente repleta de dolo... Indivíduos preocupados com a eternização dos seus nomes, dos cargos eclesiásticos, com o poder temporal para administrar as coisas do ser superior e da sua casa aqui na terra. Sacerdotes histriônicos que farejam a carne das ovelhinhas e enviam as almas para outro lugar.
As cartas de Tito; de I e II Timóteo, hoje, não têm mais a chancela de autenticidade dos especialistas destacados em filologia, no que tange à autoria de Paulo e, desde o século XVIII, são chamadas de “epístolas pastorais”. Um respeitado pesquisador alemão, Friedrich Daniel Ernest Scheleiermacher[51], ao contrário de Hegel, não subordinava a religião à filosofia, era cristocêntrico, mas contestou a autoria de Paulo em relação a essas cartas, considerando-as mitológicas.
A questão da recontextualização da volta de Cristo, presumida para aqueles tempos cristãos iniciais, devem ter causado uma decepção desproporcional aos crentes, pois o próprio Paulo acreditava que ainda estaria vivo quando Jesus retornasse ao mundo. O papel da Igreja, nesse período de espera pela vinda do reino, deveria ser apenas para o fortalecimento dos cristãos, a fim de que atingissem um estado de perfeição para o arrebatamento. E, pasmem, quem fosse arrebatado não conheceria a morte.
A partir desse período é que surgem as ocorrências fenomênicas e a ideia do batismo no Espírito Santo, acompanhado das línguas estranhas, profecias, sonhos e dons de cura. Seria talvez uma sustentação do eu interior com a finalidade divina de suportar as perseguições entabuladas naquela época? Um provimento de resistência interior? Se há fundamento nisso por que, então, não aconteceu nenhuma volta de Cristo naqueles dias?
Infelizmente, em toda a história da Igreja, só temos assistido a decepções, varridas como a poeira para baixo do tapete, pelos próprios cristãos, numa atitude vexatória... Isso parece mais pura teimosia fideísta com princípios que nos remetem aos tão citados desvios mentais. Esses desvios naturais nunca são admitidos por ninguém, pois o ego humano não se rende às verdades da razão.
O crente prefere ruminar, mastigar eternamente um chiclete sem gosto, que representa as suas decepções, do que torná-las públicas, em uma demonstração de humildade e grandeza. O religioso só dá o braço a torcer quando a cortina da fantasia cai por terra. Então, ele se vê sozinho, sem meios para recomeçar, desorientado. Sentindo o peso de toneladas de culpa pela sua ingenuidade, é obrigado a fingir mais do que nunca para manter o disfarce. A alternativa é se quebrar o orgulho e catar os cacos do vaso quebrado. Depois, colar os cacos, recomeçando, na compreensão de que o ser feliz não pode ser construído por historias que o alienem da realidade. O homem não precisa representar uma felicidade teatral, própria de um ser moldado artificialmente. Basta ser autêntico no grupo social ao qual pertence.
Todas essas falsas atribuições a Paulo e a outros apóstolos, também se refletem em Colossenses, Efésios, II Tessalonicenses, I Pedro, Judas, etc. O que pretendo com meu argumento, é mostrar que as falsificações da Antiguidade não ficaram apenas fora da Bíblia, milhares de falsificações foram canonizadas e são seguidas como algo santo até os dias de hoje! Por isso, insisto no meu princípio da inferência paradigmal injuntiva. Veja-se: Inferir é deduzir, concluir. Paradigmal é uma definição abrangente de um modelo qualquer – paradigma é um modelo, um padrão. Injuntivo é algo imperativo, obrigatório – porque injunção é uma mera situação criada por circunstâncias obrigatórias. Então, deduz-se que tudo isso é “a conclusão de um padrão imperativo”, causada por uma dedução nem sempre verdadeira. Exatamente o que vemos nas ilusões religiosas. Portanto, meu princípio da inferência paradigmal injuntiva é exatamente o que se traduz pela expressão universal e plena de significado: “o desvio cognitivo” aproveitado pelo clero!
A principal fórmula usada pelos filólogos para detectar uma falsificação em nome de algum apóstolo é o estilo de redação. Por exemplo, no caso de Paulo, sete das suas epístolas conservam uma unidade estilística, enquanto que as outras seis já demonstram pontos dubitáveis no contexto geral. E nos leva a crer que, ainda que Paulo não tenha redigido diretamente as sete cartas mais confiáveis, ao usar secretários, ainda assim, revela uma unidade no seu bojo. Mas as outras já denotam um autor anônimo, claramente tardio, tentando se passar por Paulo, repetindo-se uma prática corrente.
Depois de descobrir algumas contradições na Bíblia e obter a confirmação científica das mesmas, a tristeza se instalou na minha vida cristã, mas eu não conseguia mais me enganar. Desta feita, prossegui nas pesquisas e aconteceu o pior: as contradições foram se revelando numa progressão desconcertante.
Enfrentei o que não queria jamais, tampouco imaginei que viesse a descobrir o quanto fora enganado. Então, honestamente, cheguei à fria conclusão de que a Bíblia não é a palavra de Deus. É a palavra dos homens alterada, com enfeites, embora atrativa, mas duvidosa, construída durante séculos para ficar parecida com alguma coisa deixada por Deus para a humanidade. E, quando se deixa de crer, é porque a convicção da verdade nos pertence.
Assim, minha vida mudou novamente. Primeiro, embarquei num trenzinho com destino ao paraíso. Depois, no meio do caminho, comecei a achar a viagem meio esquisita... O trenzinho estava cheio de pessoas que falavam tanto de Deus, mas eram profundamente infelizes por trás de uma vida de representação. Verdadeiros artistas na tarefa de atuar num espetáculo de alegria desmedida, que camuflavam os tons de cinza chumbo e sombras soturnas. Esses passageiros também mentiam muito uns para os outros: diziam-se irmãos, mas se conduziam de forma contrária... Coisa horrível que vi: de manhã à noite falavam mal uns dos outros como um eczema que vai e volta. Até diziam que Deus era um só, mas cada um daqueles passageiros defendia uma doutrina diferente e sempre esquisita. Chegavam a rosnar quando entravam em choques doutrinários. Acho que facilmente enfiariam uma agulha de tricô no tímpano do outro. Ou, até quem sabe, um furador de gelo no fígado do irmãozinho. O ego daquelas pessoas não era nem um pouco diferente dos tubarões sociais, ficava bem escondido por trás de uns livrinhos surrados de capa preta. Às vezes, não eram nem livros, mas santinhos de barro com pintura em decapê, medalhinhas no pescoço ou uns amuletos que tinham a forma de cruz. Aquelas pessoas jamais fizeram parte do meu universo.
A viagem começou a ficar chata. Então, pedi para descer do trem porque percebi que aquelas pessoas queriam me usurpar a possibilidade de ser feliz. Disseram-me, já sem o “amor” que demonstraram na ocasião do embarque no trenzinho, que se eu descesse do trem seria torturado para sempre numa fogueira junto com os que haviam desembarcado antes. Achei tudo aquilo muito esquisito, até porque, o cheiro de queimado que vinha da locomotiva não era de carvão, mas de enxofre. “Ihhh...”, pensei. Mais que depressa, então, abri uma das janelas e pulei! Foram pequenas as lesões externas. Até que foi fácil. No íntimo é que ficaram as maiores feridas, mas, na medida em que eu caminhava pela estrada de volta à vida, elas ficaram cicatrizadas de uma vez por todas. Pequenas sequelas sempre sobram na batalha, mas fazem parte das decisões dúbias e cegas do passado.
Os espinhos estavam ali, continuavam à beira da estrada, mas agora eu sabia que eles eram reais, pois antes os passageiros diziam que alguém iria sempre me ajudar a afastar os espinhos do meu caminho, mas até hoje não apareceu ninguém para me prestar esse tipo de ajuda. O pior é que eles também me disseram que, se não aparecesse ninguém para me ajudar com os espinhos, era porque eu precisava deles na minha vida para crescer na fé, ou, quando não, os espinhos só poderiam ser o castigo pelos meus pecados... Eles mentiram, é lógico, pois são fracos. Descobri, então, que se eu não tirar os espinhos da minha alma, ninguém vai tirá-los para mim e que a noção de pecado, com a dose de terror que a religião aplica nos infelizes, é a indústria mais lucrativa do planeta.
O fato da insistência dogmática na tradição textual apostólica não repousa no simples fato da importância dos apóstolos em si. Repousa no pressuposto de que, sendo eles autoridade máxima em matéria de fé, o que fosse postulado significava, com efeito, a expressão do próprio Espírito Santo, o que constitui uma situação extemporânea e bastante conveniente para os criativos da fé.
A própria Bíblia declara a presença de um “secretário” de Paulo, chamado Tércio. Ora, já temos um intermediário para o principal dos apóstolos e isso significa um desdobramento interpretativo por mais que se refute essa ideia. Só o fato de lermos um texto, já significa a prática de um tipo de interpretação, pois a nossa leitura interior está associada aos conceitos que nos são familiares, às nossas limitações perceptivas e à formação da imagística na mente. A frase é antiga, mas ainda funciona: lavagem cerebral.
Ao lermos, interpretamos os fatos. Imagine-se, então, quanto mais ao escrevermos, porque, com o uso das palavras, raspamos impressões incomuns sedimentadas nas nossas mentes ao longo da vida e fazemos delas um registro inevitável. Isto é visto pela ciência como um processo automático em que apreendemos vocábulos, signos, sinais, referências equívocas, símbolos, coisas empilhadas na memória por décadas e passamos a traduzi-las em minutos. Tudo isto de um jeito sem que possamos nos dar conta das nossas ações interferentes.
Constatamos, assim, o procedimento dos antigos – o mesmo de hoje. As epístolas de Pedro foram escritas séculos depois da época anunciada e por quem dominava o grego com refinamento na redação, portanto, não poderia ser obra de um pescador iletrado. É lamentável, mas as fraudes “escriturísticas” eram mais do que frequentes na Antiguidade – habent sua fata libelli![52]
As fraudes e falsificações foram os meios utilizados no curso da história para o estabelecimento da verdade, que nada mais é do que uma convenção, segundo o farsalhão humano na elaboração da mesma. Demasiado humano. O que é uma convenção senão um ajuste? Uma combinação. Entre os homens. Um acordo. Logo, a verdade é um ajuste? Mas se é tal, deixa de ser absoluta. O pior é que deixa de ser perfeita. Tudo que é pactuado é imperfeito, porque o pacto propõe a política e, consequentemente, a mentira. Se a mentira é uma contradição, aí temos algo belíssimo na Bíblia: “Saibam, pois, irmãos, que nenhuma mentira provém da verdade”.
Verdade não se convenciona, é algo que intuímos. Está gravada como um código genético em cada um de nós. A verdade não é um ajuste, ela existe mesmo. É absoluta enquanto ocorrência, mas não significa o deus da religião. Não guarda relação com um deus construído. Não é o que proclamam, que “uma mentira dita muitas vezes se torna uma verdade”. Sofisma. Os governos praticam isso – dizem muitas palavras com mais areia do que cimento para que se cristalizem como “verdade” na mente ignara. Mas sabemos de tudo, apenas fingimos em relação às doutrinas religiosas, pois o que fazemos melhor é mentir para nós mesmos.
O tecido dogmático está por trás da religião. É uma urdidura que vem com a atração e o apelo de uma superfície encantada, mas lançando-se um olhar mais profundo, suas bases necrosadas são percebidas com clareza. Diante disso, não é difícil a compreensão da natureza humana, corrompida desde as suas origens, em relação à invenção e falsificação das escrituras.
Sobre o nosso planeta tudo faz parte de um complexo arcabouço espiritual para dar sustentação a intrincadas nuances do mundo político-religioso, que tem como finalidade perpetuar a teocracia através dos tempos – o atalho mais econômico e seguro para a dominação dos povos. O Livro é o agente dessa desgraça.
Um fato não só estranho, mas risível pela ingenuidade do povo, sempre me intrigou: se os cristãos são realmente a representação da unidade de Deus, por que a igreja dos cristãos nunca teve unidade? A resposta está no claro fato exposto até então: a Bíblia nunca foi palavra de Deus e fica bem evidente a sua construção tendenciosa, através dos voos humanos cheios de criatividade. O Livro nos deixa a herança de infinitas interpretações doutrinárias, contidas no seu corpo textual, para decepção dos que investiram a vida nos desafinados caminhos da fé. Um livro feio, de capa preta, de aparência antiestética, até antihigiênica, bem ao estilo da alegre xucralhada que se acotovela aos domingos, nos pontos de ônibus, para cruzar a cidade na volta à casa.
Ainda na linha dos pressupostos escriturísticos, passemos pelos escritos pseudoclementinos, que alguns insistem ser de autoria de Clemente, o quarto papa na sucessão histórico-apostólica romana. Embora sejam apócrifos, esses “escritos” abordam um ponto nevrálgico, controverso, mas dialeticamente bastante significativo, que é o episódio da visão de Paulo a caminho de Damasco. Com tendência para o lado do apóstolo Pedro, os pseudoclementinos relatam a querela entre Paulo e Pedro, principalmente sobre a ocorrência duvidosa da estrada de Damasco. Pedro questiona o evento nesses escritos, afirmando que Paulo não ouvira a voz de Jesus, mas a “voz interior” própria, que nos vitima com acidentes cerebrais múltiplos. Pedro reivindicava a estatura de apóstolo maior, pois convivera com Jesus, ao passo que Paulo baseava seu apostolado na visão que teria mudado sua vida a caminho de Damasco – o perseguidor que passa a ser perseguido... Pedro, então, acusa Paulo de ser um sonhador e o nega como apóstolo, segundo a interpretação pseudoclementina do século III.
O motivo da citação pseudoclementina sobre a estrada de Damasco, assunto recorrente na Igreja, é com a intenção de uma volta ao tema do desvio mental. Insisto nisso, pois é a razão de todos os nossos fracassos – a má interpretação da realidade. A fé é algo tão relativo que, a meu ver, estará sempre sujeita às variantes interpretativas. Essa acusação de Pedro, afirmando que a carreira de Paulo era fundada numa aparição, nos coloca diante de um problema tão grave que, se analisado livre de emoções, gerava em mim uma sensação de desânimo devido à distância doutrinária e a desarmonia entre os dois apóstolos. De um lado, a importância em observar as leis da Torah como cristãos; do outro, a valorização da fé sem a guarda das leis mosaicas. Então, temos ou não uma contradição bíblica decepcionante? Isso, lógico, estabelece rumos distintos e conflitantes no entendimento positivo dos cristãos. Pior que hebreus e cristãos antigos se conduziam sobre argumentos sólidos, demonstrando princípios obstinados. Fica o registro de uma grande discrepância que desencaminha os novatos.
Hoje, há unanimidade entre os mais importantes acadêmicos – filólogos, arqueólogos e historiadores –, que sustentam uma tese chocante: as epístolas de I e II Pedro foram escritas tardiamente, depois do Pedro histórico, por um autor pseudonímico. Isto, com o objetivo de conciliar os pontos de vista dos apóstolos em questão, transmitindo a ideia de que não disputavam na doutrina, ao recontextualizar a fraca reputação teológica dos mesmos. Para a vergonha dos interesseiros, nessa ótica, as epístolas de I e II Pedro dão corpo ao conceito de sintonia doutrinária e, até, impressão de amizade entre os dois apóstolos, o que não deixa de ser interessante para a Igreja.
Enfim, não há prova histórica de praticamente nada em torno desses contos miraculosos. Por exemplo, a história de Roma não registra nenhum censo no período do imperador César Augusto. Assim, também, como a história não registra qualquer massacre de bebês pelo rei Herodes... Bem, jamais sairemos dessa roda viva. É matéria de fé, das coisas ditas muitas vezes, tautológicas, para que se transformem em regras de fé para o ingenuário cristão.
Infelizmente, o que aconteceu nos tempos bíblicos, melhor ainda, em todas as épocas da história do mundo, foi manipulação do homem pelo homem. Homo hominis lupus[53]. A religião que, na ânsia de fincar os seus dogmas na mente humana, promoveu a “verdade” através da mentira. Mas, como dizia Elesbão, “o que se há de fazer, alguém tem que ensinar os pobrezinhos”.
Rodrigo Constantino, na sua obra Esquerda caviar, nos presenteia com Freud: “É necessário algum desenvolvimento intelectual para se acreditar no acaso; o primitivo, o ignorante e também uma criança já sabem atribuir uma razão para tudo o que acontece”...
Constantino com seu texto: “A angústia de viver sabendo que desgraças simplesmente acontecem, sem necessariamente uma causa específica, leva muitos à busca de bodes expiatórios – vivos ou mortos. Há os vilões espirituais também, como o karma de vidas passadas, os espíritos malignos, a “energia” negativa dos inimigos etc.”. Por que não algumas releituras?
Segundo a declaração de Freud sobre a criança e o ignorante já saberem atribuir uma razão para tudo o que acontece, de que vale continuar na tentativa de abrir os olhos do primitivo? No meu caso, vale por atender a uma imposição íntima de dever com a consciência na etapa da vida em que me encontro. Necessidade biológica. Também a esperança de alcançar pelo menos um que me ouça no insulamento desse mundo superpopuloso e sujo.
CAPÍTULO III
O cinismo crescente da indústria da fé
Tratei desse tema no meu livro A indústria da fé. Fi-lo com foco diverso anteriormente, agora quero de novo expô-lo sem rodeios e com foco mais estreito.
Existe algo assombroso no mundo de hoje que deve ser visto como uma emergência intelectual. É a crença cega, que pertenceu e deveria continuar pertencendo aos tempos antigos. A crença não evoluiu. As coisas mudaram e mais da metade da população da Terra continua a acreditar em besteiras por pura preguiça de refletir o mínimo sobre o que significa crer em algo de forma cega. Passados os séculos e o mecanismo da crença continua o mesmo!
Esse mecanismo repousa sobre paliçadas psicológicas: o instinto de rebanho, que é o devir absoluto de comunidade; de comunhão em diversos níveis, representa as estacas para a elaboração da religião. É inevitável a busca frenética por mistérios em tudo como combustível para a manutenção da fé e do encontro inadiável de significados que provoquem a sensação de eternidade.
Seguiu-se o repetitivo. Modelos existentes foram desdobrados e os humanos se fatigaram do ensino contraditório e confuso da religião. As pessoas se enjoaram com o mau-hábito dos religiosos: há séculos esmiuçando passagens bíblicas isoladas para justificar os seus interesses, inclinações íntimas, e essa atitude não é filosófica de per si – é apenas repúdio ao mau-hábito citado. A demonstração de cansaço dos modelos impostos pelo processo da civilização, um pragmatismo inevitável. Reconhecer o óbvio não deixa de ser uma ação pragmática. A religião chegou ao esvaziamento.
Se o mundo agora tende a ter o Deus bíblico como ficção, que deus deixaria de ser ficção? Quando me dizem “vai com Deus”; “fica com Deus”; “Deus te abençoe”, normalmente respondo: “Qual deus?”... Em resposta, ouço quase sempre: “Ah, mas Deus é um só”. Isto é um equívoco como declaração. Claro, pois para cada deus formatado, existe a razão básica para a sua formatação – a dogmática –, sem a qual Deus não é concebível. O religioso não identifica um deus sem o conjunto dos dogmas. Fica no escuro.
Enfim, encontraram o remédio no programa monoteísta e, depois, imprimiram a bula: o bom Livro. O único jeito encontrado pelo homem para que os devotos pudessem racionalizar tanta complexidade. Nesse faz de conta, o homini religiosi[54] descobre as suas referências de nobreza como um alvo e a simulação de certeza deixa de ser vergonha, suspeição, para se tornar algo elevado.
Nesse programa monoteísta, foi inserido o mistério da regressão infinita – Deus como criador do universo, o que propõe o criador de Deus –, dando-se por inventada a causa de si mesma. Ainda, ao se falar de monoteísmo, não adoramos o mesmo Deus. Porque caímos no plural: monoteísmos. Ainda que fosse um, as maneiras não deixariam de ser variegadas. Assim, foi proposta uma entidade superior, um ser mágico que reúne a causa de si mesmo e esmaga aqueles que não creem nele, porque os ama... É estarrecedor, o pior cego – desgraçado que se recusa a ver. E nem olha!
Por que a Igreja detém o monopólio da virtude? Tem origem no fole e na bigorna do pensamento distorcido, isto é, na antifilosofia. De acordo com Michel Onfray, “essa corja de uma filosofia que colabora – com a religião e o poder de Estado – já existe no século XVIII...”. Padres da igreja na posse da verdadeira filosofia, não só da virtude, mas o monopólio de tudo. “Todas as sabedorias antigas, por serem pagãs, são errôneas; todos os cristianismos alternativos, gnósticos notadamente, são heréticos, assim como os pensamentos autônomos ou independentes são proibidos de fato. A Ágora? O fórum? O jardim? Acabou-se... A igreja fica com o cacife e escolhe os trunfos episcopais – logo imperiais”. Essa Igreja que propala a felicidade suprema no céu, mas quer o poder no mundo. Pois, assim, nos legou Sêneca: “A religião é verdadeira para as pessoas comuns; mentirosa para os sábios; útil para os governantes”...
O que é a religião senão um anestésico brutal, que nos ensina a fórmula da felicidade por não entendermos o mundo e a vida? O real é substituído pelo imaginário com muita facilidade, pois as crenças não se fundamentam em evidências, daí virarmos presas fáceis pela nossa necessidade de crer em alguma coisa. Será que Deus, ao nos dar inteligência, castigaria-nos por usá-la? Aí está o problema, a brecha que faltava para o clero dominar o homem: a questão do medo e da culpa.
Os religiosos profissionais chegam na hora certa para explorar esses pontos fracos, como uma aranha usa a teia para imobilizar a presa. Importa que Deus seja exaltado, pois é preciso que se sobressaia o devir da alienação completa, que os seres humanos permaneçam anestesiados intelectualmente e, assim, a reflexão seja extinta no mundo de uma vez por todas. Algo ao estilo de Orwell.
Hoje, perplexos, assistimos a banalização das promessas que foram aceitas um dia como eternas. As instituições eclesiásticas caíram, através do desgaste doutrinário, pelo que semearam. Então, chegaram os carniceiros clericais para se instalar na zona de conforto dos feudos, que eles ajeitaram convenientemente. Bispos, evangelistas, missionários e até “apóstolos”, atores histriônicos supervenientes, pululam, transitam em todos os níveis sociais, num esforço derradeiro para impedir que as ovelhas apáticas fujam do aprisco romano para o redil do fradinho Lutero... Aliás, a turma dos sem cultura ou arte.
Chegamos ao tempo do cinismo. O que é isso?! Esgotaram-se os resquícios de dignidade no mundo das fés? Quando comecei a seguir as baboseiras não era assim. Pelo contrário, a competição ficou mais acirrada. Reverências a Hobbes, porque “o homem vive em permanente estado de guerra com o seu semelhante e é uma guerra de todos contra todos”. A seleção natural-social, que teve seu início nos átrios sagrados, passou pelos púlpitos e se espraiou por todos os cantos do mundo!
Não são meras diatribes o que faço a seguir, pois simplesmente não perderia meu tempo com críticas infundadas e vazias ao clero. O que registro tem o caráter de denúncia, também de apelo ao bom senso e à reflexão, na esperança de que as pessoas despertem de um sono de séculos, ou talvez milênios. Despertar não pelo uso da minha dialética mais do que modesta, mas pelos indícios de mudança nas fés pelo mundo, que são muito mais fortes do que em qualquer outra época da história. O homem sabe que foi enganado pela mentira de séculos, mas percebe que não há mais espaço no palco da falácia religiosa para atuar vida afora, pois os ratinhos começam a deixar os rabinhos de fora.
As coisas não são mais as mesmas, uma vez que respostas clássicas da religião eram em si suficientes para que o mundo continuasse com a sua trajetória tosca, sem tirar a poeira debaixo do tapete. O questionamento milenar sobre as fés canônicas, que outrora não chegava à ebulição, transbordou o bule. O ser humano está sufocado e caminha para a rejeição das transcendências. Isto tem que ser pensado e discutido, já que é sintoma grave.
Hoje, temos a vigarice bem institucionalizada. Líderes evangelistas encontraram a porta da festa escancarada e entraram sem convite! Descobriram a fraqueza do povo: o desespero da vida. Então, a convulsão social aumentou o nosso medo, a ânsia por segurança, e apagou o foco das verdades eternas para substituí-las pelo imediato – a busca da prosperidade, prato feito para o time dos profissionais da fé. A prioridade é a mesma dos não religiosos: o espaço aqui. Fala-se do céu, mas como pano de fundo de um cenário qualquer.
Miríades de pregadores, com a voracidade pelo ouro descontrolada, se organizam em redes mafiosas para perseguir o ouro e a prata. Fazem treinamentos intensos de impostação de voz com os seus sequazes, para que os tais simulem o mais fielmente possível o estilo de discurso do líder maior, o santo patrão. Normalmente, o cara é bispo – até apóstolo. Menos do que isso, como ostentação de título inventado não serve, não tem impacto. É a síndrome dos títulos eclesiásticos dos circuitos fechados alienantes. Pastor ou missionário não tem mais força popular. Apóstolo é porreta! Santa porretada.
O gestual acompanha a mesma abordagem dolosa: movimentos e gestos do líder escolhido devem ser imitados para que a imagem do tal se consolide com sucesso na mente do povo. Os líderes evangelistas, usando técnicas teatrais, fixam a sua imagem a qualquer preço... Elaboram um branding[55], fazem pastiche, fazem o teatro do povo. Esses safados implantam estilos comportamentais de fala, gestos, reações, olhares ensaiados, enfim, encarceramento perceptivo imposto. Porque existe a necessidade de criar um rótulo, uma imagem, que recebe o selo da autenticidade, a partir de um conjunto de ações que sustente uma teologia vagabunda.
As idiossincrasias introjetadas no devoto vão construir um “modo teológico”, uma diferenciação qualquer, intuída, para concretizar novo grupo social na igreja. É preciso a implantação de novidades para atrair o povo, pois a vida é um processo em constante mudança. Na indumentária dos fiéis, nos gestos de piedade assentados por intuição, que seja um código implantado e embebido em vaidade, uma vez que o crentelho precisa ser identificado por seus iguais, como pelos líderes. Não importa o grupo cristão, dos mais despojados aos mais paramentados, da Igreja de Roma ou de Lutero, o processo é o mesmo na preparação das ovelhas: a implantação da culpa e do medo.
Por que o ensinamento moral tem que ser permeado pelas fantasias e ameaças de danos eternos como propõe a religião do Livro? É fácil entender: sem ameaça, medo e culpa as pessoas não são doutrinadas com sucesso. Nessa linha de raciocínio, como então recapturar um desigrejado? O ensinamento que uma criança recebe dos seus pais não vem acompanhado de dogmas, mas sim embasado com a simplicidade do bom caminho que ela deve seguir na vida. Do mesmo jeito que a boa moral não vem da Bíblia, pois não é parâmetro para o nosso tempo. O que é bom, sublime, vem dos pais (sem dúvida), da família, dos professores limpos de caráter e amigos verdadeiros. Ora, nem toda família tem condições de transmitir princípios morais elevados, porém, muito menos um livro escrito há milênios, quando as regras sociais e as leis eram completamente díspares das que temos hoje, a exemplo de apedrejarem a mulher ou os próprios filhos até a morte quando cometiam certos pecados previstos na lei de Moisés...
Hoje, temos na pista do ouro a mais nova invenção evangélica: a teologia da prosperidade. Foi plantada a semente da cobiça pelos abutres da fé, a pastorada da corrida do ouro, hoje encontrada no bloco da neopentecostalhada – fazendo a massa pobre e desfavorecida acreditar que o reino de Deus é a busca pela prosperidade. Os fiéis miseráveis, nos estertores pessoais, com fome, sem saúde, sem emprego, não têm possibilidade de pensar na salvação da alma. É aí que entram os apóstolos da teologia da prosperidade, porque esse negócio de “salvação” ficou para trás – o que vale é prosperar!
Seriam, por acaso, traços de uma herança judaica recrudescente com o neopentecostalismo? Repare-se que o cristianismo é nada e tudo ao mesmo tempo. É como o chocolate, com mil maneiras de ser apresentado e, no final, tudo é chocolate. Escamoteando aqui e ali, consegue-se atender ao gosto mais exigente no self-service da teologia que temos ao alcance. Outros grupos, entretanto, da mesma seara dos evangélicos, se escandalizam com tal teologia e abominam a busca da prosperidade como meta de fé, esses são os pilares da fé, os crentes das antigas que, por força da oração, têm joelhos de camelo.
Assim, os monstros de Deus, que furtam a massa de manobra santa, separada para servir, mas também cheia de dolo, marcham triunfantes na direção de – Jesus? Ou a auri sacra fames[56]? Esses porcos do púlpito sequestram a programação normal dos meios de comunicação para construírem a própria imagem de grandes heróis da fé, que não passam de anões viciosos e anticristos absconditus[57]... Se eu pudesse compará-los a animais, situar-se-iam próximos ao dragão de Komodo[58], que esperam as presas com paciência desenvolverem suas infecções pós-mordida.
Esses líderes, vampiros-clericais, exploram a cura divina como uma alavanca emocional que aplicam no público. Utilizam fotos dúbias para exibir o antes e depois de doenças escabrosas, onde predominam acidentes dermatológicos repugnantes, que deixam o público ainda mais impressionado. Perfeito apelo emocional, bem engendrado, para que seja mantido o deslumbramento com a “cura” alcançada. O espírito é tão bem envolvido que os olhares mais analíticos são logo desviados através dos truques e milagres, confirmados pela eloquência do pregador histriônico de um canto qualquer.
Em meio à teatralidade recorrente, predominam as dores no ombro, no pé, no joelho, que acompanhavam a vítima até aquele momento. Depois da oração, a dor some. Outros, que chegaram sobre cadeiras de rodas, voltam sem elas, mas tortos, capengando... Continuam aleijados e agora sem as cadeiras. Bem que poderiam pendurar uma faixa no evento: “Festival do êxtase religioso neuropatológico da prosperidade”.
As promessas são variadas para a cura: dos cânceres mais enraizados às dores de cabeça mais inocentes, passando pela experiência da cura total da aids, bem como a solução da cegueira, da surdez e outras tantas mazelas presenteadas pela natureza, ou pelo Diabo. Se não foi curado, não é porque a oração do pastor falhou, é porque a fé do freguês não serve para nada. Problemas financeiros, no casamento, com os filhos, tudo pode ser resolvido pela fé, ou não, mas sempre solucionado independente de qualquer oração. Se o devoto rezar, pode demorar até uma semana para o problema ser resolvido, ou não. Mas se ele não rezar, o problema pode durar até sete dias... E o Ministério Público, pensando nos símplices vitimados, quando denunciará essa praga coletiva? Ou será que merecem mesmo tal castigo?
O clero jamais revelou ao público que orar por um milagre é a mesma coisa que esperar as leis do universo mudarem em favor de um indivíduo e dos seus interesses, contra o desamparo de outro, talvez mais merecedor de um milagre. O clero é tão melífluo que nos induz ao egoísmo, à fé egocêntrica, fazendo-nos acreditar como idiotas que somos merecedores da alteração das leis do universo em favor dos nossos interesses pessoais. Daí, esse mesmo clero, para despistar o egoísmo que retemos, induz-nos a orar para agradecer as bênçãos supostamente recebidas e a interceder pelo nosso próximo. De pronto, sentimo-nos fortalecidos, até que a culpa volte para os nossos ombros. Depois, coloca-nos de novo na pista para perseguir os interesses materiais, que são os deles no final. Se falharmos, a falha é da nossa fé, ou, então, o tempo de Deus para que algo sobrenatural acontecesse ainda não chegou.
Devemos recomeçar, filiados a um templo, é claro. É ali que acontece uma sinistra doação de sangue. A agulha fura a nossa veia e o sangue flui. Somos esvaziados. Desaparece a alegria pessoal em troca da alegria coletiva, oriunda de um método pietista qualquer. Vai embora o que nos é mais caro: a individualidade e o poder de reflexão. Nessa transfusão metafórica, nosso dinheiro também se vai... Entregamos o dízimo e as ofertas alçadas. Alguns passam fome para dar o dízimo e as ofertas. A bispalhada, entretanto, não gosta do termo “dar” o dízimo, dizendo que, se não for cumprido o ato, significa roubar a Deus. Não é dar, é pagar! Mas que história é essa de dízimo? Até onde sei é um rito antigo, destinado aos hebreus e repassado pelos levitas ao Templo na forma de colheitas periódicas. Ordenança para o antigo “povo de Deus”, portanto, os gentios não foram obrigados a tal proeza. Mas, se essa obrigação não fosse também destinada aos gentios que entraram pela janela, por que a pastorada imporia o jugo da lei aos libertos da lei?
Não dizem as Escrituras que “aquele que quiser guardar a lei e tropeçar num só ponto torna-se culpado de todos?”... Por que os pastores sugam as ovelhas, através de ofertas, dízimos, ao aplicar até o uso covarde de carnês, cartões de crédito e outras firulas contemporâneas? Já não basta proteger um deus que se sente roubado nos dízimos? Advogados do Diabo que atendem outro cliente? Quer dizer que o gentio não pode guardar nenhum item da lei, mas pode quebrar a lei sendo obrigado a pagar o dízimo, uma vez que essa lei é apenas destinada aos judeus? Povo ignorante que gosta de ser enganado! Esse povo tem dolo no coração, pois busca com extremo esforço a prosperidade e as posições sociais de destaque. São mestres da troca. Por isso, esse mesmo povo hoje lota os templos da teologia da prosperidade.
Pastores de Israel que se alimentam da gordura das ovelhas! Todos conhecem o mito de Vlad Tepesh, bem romântico, mas me refiro apenas aos vampiros do púlpito – recorrência mais grave e desoladora. Condicionar pessoas a um sistema, ao escravizá-las intelectualmente, fazê-las “felizes” apenas na condição de grupo dogmatizado, é roubar-lhes a identidade, privá-las de liberdade, imputando-lhes a cultura do “tudo é pecado”. Prática que significa sugar-lhes o sangue vampirescamente. Assim é o clero doloso, notívago, pelo hábito das sombras – hematófago em busca dos submissos. Não preserva a saúde espiritual dos devotos, nem se preocupa com o seu equilíbrio emocional, tampouco a felicidade, mas sim com a míngua que eles guardam nos bolsos, coitados. Se forem milhares de bolsos, ainda que com modestas quantias, muitos serão os milhões que fluirão como rios de água viva direto para os cofres pastorais. É na quantidade que eles ganham e ainda dizem: “Eles querem doar, nós não pedimos”... Induzem a doar! A todo instante, mesmo indiretamente. E isto está bem próximo de um poço sem fundo. As religiões mais tradicionais são reservadas e o fiel nem vê o sangue sair. Mas as “neo” alguma coisa são bem mais descaradas, vivem para o dinheiro. Com a paz do Senhor, pagou, levou! Bênçãos dos céus e promessas de prosperidade. Até o Vaticano tem um banco – e o clero se devora!
Como fé é a mesma coisa que ignorar a verdade, com boa dose de teimosia dos crédulos, o clero se aproveita dos iludidos. Esses tais comem quilos de ilusão, gostam disso, precisam disso, como viciados em sexo mental. Alimentam as ilusões porque têm medo de que lhes faltem os sonhos dourados, que são mantidos por Deus, “o amigo imaginário dos adultos”. Então, a porta está aberta para os abutres fideístas, num ato prometeico. Lá se vão os fígados dos crentes... Diz o carrasco do púlpito: “Bem-me-quer, mal-me-quer, eu fico com a grana e vocês ficam com a fé”.
Veja-se que o surto do circo neopentecostalista ainda permanece montado. Até que a moda passe. Quando os crédulos perceberem que a moda não era mais do que uma arrumação pantomimada, que as “curas” eram resultado de pura falha cognitiva, enfeitada por um espetáculo neuropatológico, aí sim, terão que enfrentar a realidade cruel: nada disso é uma questão teológica, mas científica. Facilmente explicável pelos psiquiatras. Já dizia Lawrence Krauss: “A ciência tem sido eficaz em promover nossa compreensão da natureza porque o ethos científico é baseado em três princípios: 1) siga a evidência aonde quer que ela o leve; 2) se alguém tem uma teoria, precisa provar que ela está tão errada quanto certa; 3) o árbitro supremo da verdade é o experimento, e não o conforto que se tira das suas crenças a priori, nem a beleza ou a elegância que se atribui aos próprios modelos teóricos”.
Nessa linha, segui a evidência. Quando, anos passados, pesquisei de perto a onda das curas divinas, em igrejas que eram referência no tema, fui vítima de tropeços da mente e acabei por me filiar a uma dessas instituições, que por pouco não destruiu a minha vida. A tônica era a cura divina, portanto embarquei. Depois de algum tempo, parei para analisar os casos estranhos que me chamaram a atenção por serem duvidosos, virando alvo de pesquisa. Foi medida empírica, mas apliquei a seguinte divisa: a dúvida de tudo. Descobri o que não queria – uma conjuntura fraudulenta –, pois busquei muitos líderes para obter respostas. Aquele que mais me chamara atenção, missionário que operava “milagres autênticos”, foi denunciado com o seu esquema e preso por atentar contra a fé pública. A Igreja, então, como um autêntico Tribunal do Santo Ofício, para não se comprometer, queimou o pastor na hora certa. Tirou o sujeito do mapa e nunca mais se soube dele – ou talvez tenha sido arrebatado.
Descobri porque questionei. Cheguei, então, à conclusão clara e convicta de que todas as “curas” acontecem na mente do crédulo, amparadas pelos artifícios dos mágicos que desviam nossa atenção do centro do truque aplicado. Com certeza, o truque consistia na desestabilização emocional do público presente, levando todos às lágrimas... O espetáculo tinha o apoio dos gritos histéricos, hinos em volume alto, desvio dos olhares para bengalas brancas sendo arremessadas, feridas abertas e infeccionadas, indução a orações barulhentas para manter o clima, aparência de autoridade crística do líder, êxtase contínuo para disfarçar, enfim, atitudes cênicas variadas para reforçar os milagres... A maioria era mantida crédula, inclusive eu, que aceitei o engodo com medo de duvidar de Deus. Descoberta a fraude, o milagreiro foi execrado, principalmente pelos irmãos da própria fé. Depois, sem desafinar o tom, a igreja providenciou outro missionário de curas divinas para não perder a concorrência com igrejas da mesma linha. Lógico, com a adoção de novas técnicas e artimanhas. Hoje, a neurociência deixou tudo isto bem claro, o processo das funções neuronais.
O novo missionário, sucessor do embusteiro, tinha um topete nojento, que não lavava nunca e o colarinho tão ensebado, que virou gozação entre os fiéis. Os crentes chamavam-no de pastor “cabeça de sebo”... Mas era santo. Faltava-lhe o pescoço, por ser tão curto, nem virava direito. Comerciante e dono de muitas lojas populares, gostava de olhar para os outros com ares de apóstolo, empoleirado no púlpito. Aconteceu que, mesmo velho que era, envolveu-se num escândalo com uma jovenzinha, motivo para o fim da sua carreira funesta... Menos um santo maldito no rol dos oportunistas. Enfim, o povo alimenta seus líderes famintos com o suor do próprio rosto.
Povo estúpido. Carente e com aparência de coitadinho. Mas talvez nem seja tão coitado, pois também é doloso. No fim das contas, todo mundo quer a mesma coisa: o reino de Deus, mas antes ajeitar a vida por aqui... Alguns, até parecem buscar primeiro o reino e a sua justiça, para depois ajeitar a vida. Comigo, há muitos anos, não deu lá muito certo priorizar o sonho, pois caí no real, meu burrinho escorregou e se estropiou. Bem, pelo menos tentei prestar um serviço a mim mesmo, vivendo a fantasia como eles mandam, mas nem tudo foi perdido, pois tive a oportunidade e o privilégio de ajudar bastante a pastorada a prosperar. Um deles, inspirado, até me disse que Deus iria me recompensar no céu por tanta generosidade com a Igreja. Ruborizei-me de emoção. Então, pude dormir tranquilo, esperando a bondade do altíssimo que jamais tarda e não falha.
Se o engano existe é porque o povo o cultiva. Em todos os níveis – da política à religião. De que adianta, portanto, varrer o sectarismo da face da terra? Enquanto só existir um humano nesse planeta, a religião existirá com ele, porque o homem comprova que tem necessidade biológica de crer em alguma coisa. Vai ver que não passa da crença na sensação de fé; de proteção; de amor; de justiça; de eternidade.
A fortiori ratione, o presente livro é escrito, não como diatribes em oposição à Igreja, mas como um bloco de texto em que insiro denúncia contra o sectarismo e o testemunho que me preocupei em buscar incansavelmente: algo verdadeiro oculto por trás da religião. Ninguém me ajudou, achei o atalho sozinho, por isso estou certo de que posso dar uma pequena contribuição àqueles que se encontram sufocados pela religião, como eu estava no passado. Afinal de contas, nunca é tarde para prosseguirmos em busca da verdade.
O desgaste da ideia de Deus
Construíram um senhor fornido, de barba crespa e branca – em seguida, enfiaram-no numa camisola branca, lá na Antiguidade. Confesso que o acho parecido com Karl Marx. Um misto de aparência de bonzinho com um aspecto bruto e grosseiro. Isso mesmo, o gênio de Michelangelo nos deixou esse incrível retrato divino-anabolizado da Antiguidade. E se os papas mantiveram essa figura no teto da Sistina, é porque pegou. Assim é Deus!
Os outros também são parecidos com Deus, porque os demais pintores também tinham sua devoção. Mas, no meu simples ponto de vista, acho que fico mesmo com o Deus da camisola. Bem, retomando um tom mais sério, a ideia da deusa-mãe, anterior ao monoteísmo judaico, não prosperou. Por que razão o monoteísmo judaico triunfou com a formatação de um deus masculino, de voz grave? Pelo menos foi assim no filme de Cecil B. DeMille...
Foi concebido pelos hebreus um modelo de deus masculino, forte fisicamente como pintado, mas que resultou confuso e fraco nas atitudes, a ponto de ter se arrependido de haver criado o ser humano. Os antigos hebreus projetaram uma figura masculina que representaria o seu deus. Curioso, deram-lhe um nome que não poderiam repetir à toa, pois seria tomá-lo em vão – mas e agora?
Desde que as sociedades antigas se tornaram patriarcais, o deus tinha que ser macho e precisava de uma biografia. Biógrafos hebreus nunca faltaram, por isso, hoje temos o Livro (o segundo volume sobre o filho veio depois), embora, com a evolução do mesmo, não pudessem mais mudar o sexo de Deus. Já estava registrado, senão o que seria da religião do Livro?
Revendo Michel Onfray sobre a construção do Livro: “Os evangelistas desprezam a história. Sua opinião apologética o permite. Não é preciso que as histórias tenham acontecido efetivamente, não é útil que o real coincida com a formulação e a narração que se oferece dele, basta que o discurso produza seu efeito: converter o leitor, obter dele uma aquiescência sobre a figura do personagem e seu ensinamento”. Temos, assim, a forma perfeita para o constructo teocrático do Livro, segundo Onfray, que prossegue: “Todos creditam realidade a uma ficção. Acreditando na fábula que contam, dão-lhe cada vez maior consistência. A prova da existência de uma verdade reduz-se com frequência à soma dos erros repetidos que um dia tornam-se uma verdade convencionada”.
O momento mais difícil na minha vida de credulidades, mas que não me desviou do enfrentamento com a questão em si, foi conhecer o que concluiu Michel Onfray: “Jesus é, portanto, um personagem conceitual. Toda a sua realidade está nessa definição. Certamente, ele existiu, mas não como figura histórica – a não ser que de maneira tão improvável que pouco importa a existência ou não. Ele existe como uma cristalização das aspirações proféticas de sua época e do maravilhoso próprio dos autores antigos, isto de acordo com o registro performativo que cria dando nome. Os evangelistas escrevem uma história. Com ela narram menos o passado de um homem que o futuro de uma religião. Artimanha da razão: eles criam o mito e são criados por ele. Os crentes inventam sua criatura, depois lhe prestam culto: o próprio princípio da alienação...”. Para mim, foi muito difícil enfrentar esta declaração, justamente pela carga de coerência que ela carrega.
O homem encontrou um meio para fixar a imagem de Deus desde a Antiguidade, sem o qual a imagem convencionada não teria alicerces, mudaria mais amiúde. Esse meio se mostrou eficaz através da escrita de uns livros sagrados. Como funciona o processo de aplicação pedagógica dos livros? Muito simples. Adotando o princípio da fidelidade do devoto, tomemos a Bíblia como modelo. Se um religioso admoesta alguém sem usar o Livro, dizendo que o tal cometeu o pecado de adultério, esse alguém pode mandar o religioso passear em outras bandas. Mas se esse mesmo religioso utilizar o Livro, citando uma passagem relacionada ao erro em questão, a pessoa advertida encarará a situação de outra forma. O medo toma conta dela, pois não é o religioso quem diz, mas o Livro sagrado. Nessa esteira, surge um impasse difícil de ser resolvido por alguém de conhecimento atrofiado. Vem o medo compreensível dos cérebros sem nutrientes.
Nessa linha de raciocínio, o ensinamento sobre adultério seria absorvido anteriormente pela fé do devoto. Uma vez assentado o referido tropeço cognitivo na mente crédula e, com a consequente confirmação emocional no indivíduo doutrinado, a estratégia da escrita responde ao resultado com êxito absoluto. É fato concreto, pois a escrita estabeleceu um estereótipo que, sem dúvida, passa a ser de aplicação universal.
O episódio, que relata a situação de adultério, torna-se uma história aceita universalmente pelos crentes. O assunto é mais forte do que o acontecimento, por isso, tende a configurar uma verdade admitida. Este é o mecanismo do dogma, portanto, não é para ser questionado. A vontade de Deus sempre contou com a preguiça intelectual dos seus seguidores e da burrice mesmo.
Os protestantes e os católicos já aceitaram, mesmo veladamente, o método histórico-crítico tão enfatizado neste livro. Os cursos de teologia das igrejas mais importantes adotam esse princípio por uma questão de inteligência, pois perceberam que o cristianismo precisa de adaptações, novas interpretações da Bíblia, para que ela não receba o rótulo de história da carochinha... Evangélicos, imãs muçulmanos e rabinos ortodoxos, cegos, insistem na ideia de que o Corão e a Torah provêm literalmente da boca de Deus.
Uma prova inconteste de que o cristianismo está mais lúcido em relação ao irreversível método histórico-crítico, é a declaração do papa João Paulo II, em 1996, sobre o desdobramento da teoria de Darwin, afirmando que ela é “bem mais do que uma hipótese...”, ao admitir que “se o corpo humano é originário de substâncias preexistentes, a alma tem que ser imediatamente criada por Deus”. Ora, ora... Isso é um grande sofisma, mas foi enviado pelo papa oficialmente à Pontifícia Academia de Ciências do Vaticano. Falha que demonstrou a grande fraqueza da Igreja de Roma no século XX, pois agora eles não têm como refutar o princípio da seleção natural e do evolucionismo. Se o papa tivesse refletido mais, não prolataria uma sentença absolutamente romântica, na tentativa de salvar a fé católica. Na seleção natural, Deus é desnecessário.
Mais uma derrota da igreja: o sumo pontífice embolou fé com ciência. Ó grande papa, como vossa santidade vai resolver sobre os seis dias da criação e o sétimo, feriado de Deus? Para complicar mais, o sucessor, Bento XVI, demonstrou também ser adepto do método histórico-crítico, pois aderiu ao princípio do que Jesus poderia ter dito ou não, atribuindo isso aos acréscimos tardios e alterações textuais da Bíblia. Aliás, Bart Ehrman foi o grande responsável pela divulgação do método citado. Talvez seja esse um dos motivos da queda de Bento XVI. Mais do que nunca, ficaram flagrantes os sintomas de desmoronamento da Igreja de Roma no século presente. Qual será, então, o futuro da fé cristã?
Temos o Livro, a fortiori construído para firmar o perfil de Deus, agora, no sentido inverso, por revelar tantas contradições, passa a comprometer a ideia de Deus. Observe-se que o alicerce da casa já não se mostra suficiente, porque puseram na edificação muito saibro e pouco cimento... O fato é que as transcendências não bastam mais! Então, convém que dissimulem, pois uma vez que a Igreja reconhece abertamente o método histórico-crítico, seu futuro se torna incerto e ameaçado, mas os que já estão no poder permanecerão no reino aqui da terra ainda por um bom tempo.
Há quem ainda defenda a Bíblia como palavra de Deus, no rigor máximo da expressão. Sustentam que, quando canonizada, seus redatores deixaram de propósito os deslizes que a Bíblia apresenta como prova da honestidade dos seus escritos. Ora, seus primeiros redatores não quiseram alterar as contradições para que, através dos erros, as Escrituras mantivessem o selo de autoridade maior, justamente como prova da fraqueza humana. Acho difícil que isto tenha se passado dessa forma. Vejo neste argumento a afirmativa da imperfeição humana, com a finalidade de reforçar a perfeição de Deus, o perdão divino e jogar a culpa na humanidade infeliz.
É preciso separar as coisas. Importa, então, a priori fazer mais uma observação sobre este trabalho: minha intenção não é discutir a natureza de Deus como objetivo primeiro, mas sim trazer à luz o problema da construção da Bíblia, que mantém o conceito de um deus específico, formatando-o. Em seguida falo da impossibilidade de que essa mitologia seja mantida. Até porque, o presente livro perderia sua retaguarda científica, pois o que está em discussão permite a análise histórica e a abordagem da razão.
O Absoluto impessoal, ou Força superior, é uma hipótese. Por essa razão, não existem elementos probatórios da ciência para tratarmos de um assunto tão abstrato. Nem mesmo o Deus da Bíblia está num plano primacial de discussão. Ele é um produto do Livro. Somente dessa maneira, poderemos discutir a história do nascimento da religião do Livro, com todas as suas implicações.
Ao discutirmos um Ser Absoluto, caímos inexoravelmente na roda da religião e o que pretendo é ser racional. Hipóteses, na ótica científica, exigem provas. Na religião, interpretações. Não é à toa que ainda vivemos sufocados por uma emergência intelectual sem proporções, a contumácia da fé sem reflexão. Interpretações não me interessam, todos têm muitas. Comprovação histórica é outra coisa, nada tem a ver com o atraso da religião.
Todo devoto tem cegueira da razão e permanece encarcerado ao tenebroso mundo perceptivo que o engoliu. Ele detém uma visão parcial da realidade – fracionada –, longe de vislumbrar o todo. Lembremos, então, de um argumento primário, mas extenso na expressão: “todo religioso acha que sua religião é a certa”, ou, pelo menos, a que mais próxima está da verdade. Ora, se a sua religião é a certa, a minha tem que estar errada, porque não há verdade em coisas que divergem. Essa história de que todas as religiões são boas, só porque promovem o bem, não corresponde à realidade. Nenhum dogmático aceita o dogma do vizinho, antes combate o tal com uma espécie de ódio silencioso, esperando que Deus esclareça o vizinho ou castigue o incréu sem piedade. Concorrente bom, afinal, é concorrente morto...
Existe uma ética suspeita no meio religioso, que estabelece certa disputa silenciosa. É uma expectativa de comprovação divina nas doutrinas de cada um e, quando isso não acontece, sobrevém o desconcerto, amparado pelo silêncio do crente. Mas quando a comprovação “acontece”, ou melhor, um desvio cognitivo causa essa sensação, significa para ele a assertiva de Deus, a confirmação final. Confirmação emocional! O adepto da fé não pode viver sem respostas, mesmo que ele as invente. Deus, então, “mostra” ao religioso vencedor, sempre com fundo doutrinário, que a sua religião é a certa, o que é motivo suficiente para que ele prossiga na fé, cheio de confiança, sem perceber sua própria cegueira intelectual pelo resto da vida. Esta é a confirmação emocional que vem depois do desvio cognitivo, a inferência paradigmal injuntiva, mãe de todos os “achismos” e distorções cognitivas.
Sobre mim, posso falar com segurança. Quando, no passado distante, ingressei no meio das seitas cristãs emocionantes, uma denominação atraiu minha atenção em particular. Chamava-se “Assembleia de Alguma Coisa”. Imediatamente, achei que havia encontrado meu caminho para o resto da vida e tudo parecia mais claro do que a água. Cheguei ao ponto delirante de admitir outras denominações como boas, que seus integrantes também eram salvos, mas que a “minha igreja” superava as demais, pelo simples fato das doutrinas serem mais próximas da verdade...
Meu primeiro grande fracasso cognitivo! Uma viagem que quase me levou à ruína absoluta: distorção de valores, ruptura social – amigos, família –, tudo por água abaixo. Alienação total e neurose típica dos “escolhidos”. Assim, minha mente foi formatada.
Depois do período pentecostal de lavagem do meu pequeno cérebro, fui conduzido à última fase: a confirmação emocional. Depois que fiquei imbuído do espírito de santidade, meu cérebro aumentou de tamanho, mas pelo excesso de estupidez e ela pesa. Era um separado para servir e isso mexe com a vaidade espiritual de qualquer um que acredita nessas coisas. Já pensou? Um escolhido de Deus? Pois é, assim encontrei a igreja certa e perfeita, uma seita conhecida como “Assembleia de Alguma Coisa”, até que um dia, felizmente, acordei do pesadelo da imbricação dogmática.
Foram anos de vida em uma nova experiência – algumas lições positivas, outras predatórias. Um mergulho na religião do Livro. A angulação mudou, a lente de imagem distorcida mostrava o paraíso ainda por aqui, com a extensão posterior, é claro. O reino por aqui significava a felicidade completa com a direção de Deus nos mínimos detalhes. A Bíblia era mais do que uma bússola, servia até para saber a hora do cafezinho, o que falar com os fulanos do caminho, as pessoas que deveriam ser doutrinadas por mim e a escolha, por inspiração divina, da minha cueca do dia...
O Livro santo era como o ar e a água, necessário à vida. Mas muitos anos se passaram em meio a dúvidas e o Livro ficava cada vez mais pesado. De engolir. Era, entretanto, a única alternativa conhecida por mim para chegar a Deus. Só em pensar em outros meios, os cabelos ficavam em pé, pois deixar o Livro seria negar a Cristo e passar a eternidade sem ele. Ideia assombrosa que me acompanhava. Passado um bom tempo, as sombras se dissiparam, o que me permitiu avaliar o quanto os religiosos destruíram os meus neurônios. Pus-me, então, a caminho da libertação e deixei a Igreja por uma questão cultural!
Quando toco neste assunto de razões culturais, os crentes me interpretam como pernóstico, mas é a realidade, pois o indivíduo que cultiva a razão e adere ao pensamento científico, não consegue viver no meio sectário, a menos que seja por interesses pessoais ou eliminação dos conteúdos acadêmicos. O conhecimento científico não pode conviver com dogmas religiosos. Se hoje contemplamos uma cena desgastada da ideia de Deus, deve-se isso exclusivamente ao livro que o homem chama de palavra de Deus e, sobretudo, a própria submissão estrábica ao mesmo.
A ideia do Deus pessoal se esgotou. O Deus bíblico que se propunha a intervir nos negócios humanos caiu em desuso, talvez porque sua atuação não esteja mais convencendo os próprios fiéis. De um lado, a imagem do todo-poderoso, Pai de amor, com promessas infinitas, mas que emperrou na prática – deus do silêncio. Isto me lembra da história do garotinho pobre que pedia a Deus uma bicicleta todo dia e ela nunca veio. Ele percebeu que Deus não funciona dessa maneira. Então, o garotinho, cansado de esperar, roubou uma bicicleta e depois pediu perdão a Deus... Pedimos, pedimos e o silêncio permanece, mas Deus está ali. É só confiar. Depois de confiarmos, a vida passa. Na verdade, ele não estava ali como pensávamos. Tinha ido dar uma volta.
Quando cansamos do silêncio, achamos definitivamente que não somos ouvidos porque nossa fé não é mais a mesma, como a dos antigos, que movia montanhas. Conheci um físico teórico que se tornou um cristão metodista, lavaram-lhe o cérebro para que se sentisse cada vez mais culpado pela pobreza da sua fé, até que ele adoeceu e morreu de tristeza, culpando-se pelos próprios pecados. Enquadraram-no na visão clássica judaica do sofrimento: pecou, pagou! Quantas vidas se perderam nesse rumo?
Formaram-nos na cultura da bondade divina universal. Deus é sempre bom e nós sempre maus. Sabem o que acho de fato? Somos realmente maus, sempre tendenciosamente maus na prática e Deus eternamente bom no Livro, mas não na prática. Melhor interpretando, o deus projetado no Livro poderia ser um fantasma brincalhão? Um ogro santo e torturador ubíquo? Ora, Deus não poderia ser isso, pois é genético resistirmos ao mal.
Quero tocar num aspecto polêmico da crença: o que temos de melhor em nós? Exatamente o que queremos que Deus tenha em abundância, já que somos sua imagem e semelhança. A partir daí, esperamos, a qualquer custo, o amor absoluto de Deus. Amor justo, porque, pela razão de amarmos ou tentarmos amar, temos a sensação de sermos justos por entendermos que Deus é justiça pura. Em suma, projetamos no Ser maior imaginário aquilo que sentimos ser, para depois obtermos a recompensa dele. Fixamos assim a ideia de um ciclo divino. Chamo isto de catarse do desamparo.
Para nos desvencilharmos da ideia do “amigo imaginário”, temos que recomeçar. Reestruturarmo-nos para que fiquemos refratários aos falsos sinais do cérebro que chegam à mente, contando com o único meio defensivo disponível: o uso da razão. O cérebro quer preservar nosso equilíbrio psíquico, ainda que seja através dos meios ilusivos-cognitivos que tomam a mente de assalto. Por exemplo, sabemos que a questão da origem e evolução da vida na Terra já encontrou uma resposta satisfatória com o legado da obra de Charles Darwin. Então, qualquer explicação fantasiosa dada pela religião, não passa de mitologia dos tempos antigos. Logo, pensando com reflexão científica, o mito adâmico já caminha longe demais no século em que vivemos. A lenda de Adão e Eva tem um aspecto cultural desconcertante, ridículo e vexatório, sob a luz da razão, para ser levado a sério hoje.
Para considerarmos a ideia de desamparo, seria preciso que um deus qualquer tivesse antes nos amparado, independente da noção do Éden. Logo, construímos esse conceito para não termos que suportar o peso da solidão irreversível. Mas, ainda assim, seria mais fácil conviver com a ilusão do amparo do que com o insulamento do mundo sem Deus, onde nem caberia o conceito de um amparo qualquer. Debatemo-nos como insetos agarrados à crença num ser maior, pois a ideia do nada – a limine –, nos apavora.
Evitamos assuntos que nos amedrontem ou se desdobrem em argumentações que mexem com pontos de vista íntimos. Temos a religião como exemplo. As pessoas preferem não discutir verdades universais. Conservam as suas opiniões particulares, por medo e comodidade, fazendo uso de um instrumento social de defesa.
O ser humano, por ter a dúvida fazendo parte da sua natureza, recebe o encargo da religião: a obrigação de ter fé. Quem, então, teria a dimensão da fé bíblica? Ora, isso tudo faz parte de um projeto para encarcerar o homem, pois para termos esse modelo de fé, só enfiando a mão no bolso para tirar um santinho qualquer que sirva de referência. Qualquer santinho que se preze tem uma história – uma historinha cor-de-rosa – para iludir os coitadinhos.
Ninguém viu nem ouviu nada, mas a história do santinho de per si, mais o que o padre disse, confirmam a verdade. Sem contar com a pintura do beato impressa no folheto, que também comove. O tal santinho teria vivido provavelmente no século XIII, na Alsácia-Lorena e curado uma criancinha de lepra quando essa veio lhe abraçar... Na verdade, as historinhas são todas inventadas. A partir daí, os teólogos, para dar corpo à historinha, enfeitam um pouco mais a invenção do populacho e beatificam o tal santinho séculos depois. Aos poucos, testa-se a reação dos devotos em cada caso. Tem que ser devagar para não ir contra os sentimentos do povo parvo, caso contrário não vamos ter uma canonização. Como diz o senso comum, não se muda nada, “é assim que funciona”.
Pensando bem, nem precisa ser um santinho, qualquer filhote de Lutero serve como testemunho. Um caso ali, outro aqui, um versículo de apoio e temos uma história das grandes! Nas curas então nem se fala: bengala branca jogada fora; cadeira de rodas aposentada; a dor no ombro foi embora; o joelho ficou bom; resfriado também; a dor de cabeça passou; emprego novo da filha; marido que não bebe mais; “ô grória”; lencinho ungido na barriga para ter gravidez abençoada; o time que finalmente ganhou o campeonato pela fé; “ô bênça”... Então, falou o incréu: “Larga de ser trouxa seu devoto e vai estudar!”.
Amantíssimos irmãos: Madre Teresa de Calcutá duvidou da existência de Deus por mais de quarenta anos! Então, quem sois vós, que tanta fala procede só da boca e não do coração? Quanto à atitude diante da vida a ser tomada, já que nos descobrimos meio preteridos pela divindade, falaremos mais adiante.
Na construção do cristianismo primitivo, desde as lutas entre os ebionitas, marcionitas, gnósticos e proto-ortodoxos, a arena dos confrontos era bem ativa até tomarem o caminho de Niceia. A partir do concílio, a beligerância teológica abrandou-se. Definiu-se, favorecendo os proto-ortodoxos. Mas é conveniente lembrar que os contornos doutrinários eram fornecidos pela teologia paulina.
No fio de uma análise crítica, voltemos o olhar para o apóstolo dos gentios. O cristianismo não teria a forma de hoje se não fosse delineado por Paulo. Os evangelhos difundiram-se depois das epístolas. Logo, elas conferem o tom e a dialética das vestiduras teológicas do cristianismo. O estranho, na arrumação do Livro, é que essas epístolas traçaram rumos dogmáticos ao ponto de suscitar querelas entre os próprios pais da igreja primitiva. Alguns até dizem que o apóstolo Paulo criou a cristandade a sua imagem e semelhança.
Não podemos negar que, considerando a história, houve uma construção teológica gradual da figura de Jesus – passo a passo – e não há como refutar o fato da ideia completa para perpetuá-lo. Ideia essa que extrapolou os textos canônicos; criou símbolos e alegorias, que são usadas por manipuladores até os dias presentes. Mas por que houve evolução dessa forma? Simplesmente, porque a verdade pertence aos filósofos, historiadores, cientistas e não aos seguidores da religião... Entretanto, nossas verdades religiosas são construídas com base na compreensão de mundo que nutrimos, mas como descartar o emocional, que é da nossa natureza?
Na linha de raciocínio a priori, a Bíblia não se fundamenta na história, então, abre-se uma imensa janela para a licença poética de distorção. Porém, a finalidade do Livro não é outra, pois importa antes preencher as expectativas dos crédulos na sua visão de mundo, estabelecer a expectativa de verdade sem a preocupação de informações históricas corretas. Como? Sendo plausível com a compreensão do crente, a ficção se impõe como verdade histórica, adequada ao esperado por alguém que faz um acordo com os autores das escrituras para encontrar o “jeito certo” de ser feliz. Esses contadores cristãos de histórias eram hábeis em agradar as massas e alimentaram a ilusão do povo com o primeiro livro de autoajuda no mundo. Ou seja, as emoções vêm sempre primeiro.
Uma vez a fábula anunciada, desde que em nome de Deus, a força da linguagem vai conferir à lenda muito mais consistência, até que se torne uma verdade convencionada. Só que o mundo de hoje passou a prestar mais atenção a essas coisas e reconheceu a confecção mitológica das escrituras, assim como a gigantesca oficina que forja os ilusionistas da fé. Essa é a razão do desgaste da ideia de Deus que chegamos, em pleno século XXI.
Bispos pentecostais, pastores e padres eletrônicos que disputam acirradamente espaço nas mídias, oferecendo curas fantasiosas – prosperidade como nova teologia. Já temos próteses clericais que se intitulam apóstolos, mesmo sem terem andado com Jesus, descendo de helicópteros particulares para fazer milagres no meio da multidão... Enfim, um absoluto festim social na busca do milagre, que nada mais poderia ser do que um efeito sem causa.
Esses heróis da fé duvidosa são os campeões da enxurrada do dinheiro fácil, que sai dos bolsos de apedeutas e que mantêm esses apóstolos como todo-poderosos da fé midiática. Se eles têm poder é porque o outorgamos também como cínicos. Torpes apóstolos com suas mansões de torneiras de ouro, inspirados em Hugh Hefner, tais como na mansão da Playboy. Qual a diferença? As torneiras e o espírito são exatamente os mesmos... Pintaram a cruz de dourado! Louvada seja a dolarização da fé.
Até agora, vemos milhares de pessoas em situação silente. Por medo, já que ninguém quer se envolver em discussões que não costumam acrescentar nada aos seus bolsos. De mais a mais, tudo isso parece estéril, porque os humanos não se demovem dos seus pontos de vista religiosos, que são apenas estacas podres para as justificativas dos seus interesses pessoais. Ou pelo pavor da morte.
Assim, as pessoas falam de Deus como um discurso de hábito, não preocupadas com a retidão que o cristianismo propõe, mas apenas em repetir o que se conhece e que serve para todas as religiões. Por tudo isso, chegamos a uma situação irreversível de desgaste da ideia de Deus. O crente nunca se dá conta do grau de fundamentalismo em que está envolvido. Ataca os semelhantes na ânsia de doutriná-los para que não entrem na danação eterna, mas não conseguem parâmetros de equilíbrio e felicidade para as suas próprias vidas. Na verdade, as religiões só chegam a ser tolerantes quando não têm mais força para converter os outros. Então, surge o ecumenismo e cada macaco que se limite ao próprio galho de origem...
Criamos Deus à nossa imagem e semelhança, mas, devido a tão pouca artesanía, fizemos um ser cheio de problemas, do sexo masculino, que só nos deixou a ver navios. Percebe-se, então, que não cabe nenhum tipo de revolta da nossa parte contra esse deus de plástico, o da religião, uma vez que é apenas uma construção imperfeita, por falta de técnica. Se a ideia do divino se desgastou de vez, fato que se entende por óbvio, é porque declararam a morte do deus da religião e sem muito êxito, pois temos consciência de que os mitos nunca morrem. No caso de Papai Noel é diferente: sabemos no fundo que ele existe e insistimos em não acreditar nele.
Um mundo de discrepâncias
Decidi, neste capítulo, expor uma relação muito reduzida de contradições da Bíblia, mesmo porque são milhares as que existem, sendo as escrituras a origem da ideia do deus que concebemos e fixamos na mente. São intermináveis as situações de montagem de texto que a filologia classifica como infantilidade; episódios com pretensões históricas que a arqueologia ignora; a geologia deplora; como também fantasias teológicas que dão a impressão de terem sido criadas numa creche, no recreio, como um jogo de crianças.
Para dar mais movimento ao texto, resolvi utilizar um critério aleatório de exposição, sem nenhum compromisso com a ordem cronológica dos fatos. Embora tenhamos tratado desse assunto no início, voltemos a ele. Isso cria uma onda de questionamentos que podemos até evitar, mas não devemos negar se quisermos ser honestos. Até quando adiaremos essa posição de fraqueza, que se torna pesada e elimina a possibilidade de vida feliz, justamente por sabermos que nos falta boa dose de coragem para repensarmos a religião? É só uma questão de termos disposição para refletir sobre a religião do Livro e os horizontes ficarão mais claros.
As contradições no texto bíblico já adquirem corpo logo no primeiro capítulo do Gênesis. Somente depois do cativeiro da Babilônia, no século VI a.C., é que anexaram o livro da criação aos demais que compõem a Torah... Uma verdadeira batalha de testes com o intuito de medir a reação psicológica do povo da época para tornar sagrado o livro dos hebreus. Desta maneira, como bem dizia Nietzsche, “e criaram-se umas tais escrituras”...
Ainda existem grupos que proclamam a completa inerrância da Bíblia. São fundamentalistas incorrigíveis. Afirmam que Adão e Eva existiram literalmente no tempo, no espaço. De jeito doentio, proclamam a Bíblia como palavra de Deus e não admitem nenhum tipo de discussão contrária a isso. Então, o que vamos fazer? Nada, porque já me reservei: não jogo mais pérolas pela janela e acho que você deve fazer o mesmo. Não se muda ninguém – as pessoas precisam sofrer e se decepcionar para enxergar a realidade. Tenho certeza de podermos ajudar pessoas, quando forem receptivas e respeitosas, mas na condição de demonstrarem necessidade de ajuda de quem já viu como as coisas funcionam. Portanto, desde que sem os ares professorais do religioso.
Os tais fundamentalistas chegaram à loucura de construir um projeto de silogismo para defender a fé cristã: “Deus não pode errar. A Bíblia é a palavra de Deus. Portanto, a Bíblia está isenta de erros”. De onde esses filósofos tiraram as duas premissas de que Deus não pode errar e a Bíblia é a palavra de Deus? Da própria Bíblia! Temos, então, um sofisma dos bons... Citam a Bíblia como prova da própria Bíblia. O Livro defende o Livro, assim como os míopes mentais defendem o pouco que veem.
Os mesmos fundamentalistas afirmam que os erros existentes nas Escrituras foram cometidos pelos copistas, mas os originais são perfeitos, sem qualquer erro. Mas que originais, se eles não existem? Chegam a dizer que os erros, se encontrados, jamais afetariam a doutrina cristã... Têm a opinião lunática de Deus ter adotado a revelação progressiva, assim, revelações últimas vão sobrepujar as anteriores, criando a situação ideal para dissipar os erros grosseiros com boas justificativas mais recentes – uma forma divina de inventar um upgrade do Livro! O repugnante argumento daqueles do caminho fácil – a tese da essência inalterada –, apesar das traduções.
Hoje, surge mais uma terrível ameaça: se não existe o Adão histórico, as escrituras desabam e com ela os dogmas cristãos. Mas a realidade é que, descartada a infantilidade oriunda das mentes obtusas, a ciência já provou que nossa espécie tem a origem nos seus ancestrais, fixada há milhões de anos. Isto é indiscutível para as pessoas que tenham alguma formação acadêmica.
Exemplo tosco da revelação progressiva hipotética: o fato de Deus, quando teria criado Adão, ter-lhe ordenado que comesse apenas ervas que dão sementes e frutos de árvores, que também dão sementes. Bem mais tarde, entretanto, quando Noé teria saído da arca após o dilúvio, houve a autorização do Eterno para que ele passasse a comer de “tudo que se move e vive”. Sendo a revelação anterior revogada, agora era permitido comer carne. Afinal, caro leitor, o mundo mudou bastante depois da enchente.
As Escrituras dizem que Deus é onipresente. Mas, como o Deus dos hebreus era dado a teofanias[59], aparecia lá e cá quando menos se esperava, novas dúvidas surgem. Não é à toa que desceu para inspecionar a torre de Babel que os homens edificavam; também teria vindo para conversar com Moisés, Gideão e Josué. A natureza pessoal divina perdera a onipresença temporariamente para atender a necessidades de algumas visitas de caráter mais individualizado – de onipresença a aparições pessoais.
As questões relativas ao emprego da terceira pessoa em muitas passagens bíblicas, como no caso de Êxodo 6:26-27, que se refere a Moisés e Arão como “são eles”, caracteriza que a passagem foi escrita por outro autor e não Moisés. Mesmo assim, os defensores da inerrância das Escrituras declaram que os escritos antigos seguem essa linha de construção de texto na terceira pessoa. Fica-se sem meios de debate com os sectários, pois tudo é sustentado pela própria Bíblia e nunca através do método científico.
A doutrina cristã diz que Deus não muda. Por que razão se fala tanto que Deus se arrependeu de ter criado o homem? Está lá em Gênesis 6:6: “Então se arrependeu o Senhor de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração”. No livro de Êxodo, o Criador se declara arrependido do mal causado ao povo. Em I Samuel 15:35, Deus se arrepende de haver escolhido Saul como rei de Israel. Instabilidades de Deus? Não, é falta de um projeto literário melhor dos hebreus. Ao inventar a Bíblia, não deveriam ter descuidado dos traços elaborados da personalidade divina. Em Números 23:19, escrevem: “Deus não é homem para que minta; nem filho do homem para que se arrependa”. No livro de I Crônicas 21:15, Deus manda um anjo destruir Jerusalém, mas, no meio do caminho, se arrepende e manda o anjo voltar. Em Jeremias 15:6, Deus diz que está cansado de se arrepender. No mesmo livro 18:8, o Criador promete se arrepender. Em 26:3, novos possíveis arrependimentos. Mais adiante, no verso 13, outra recaída de arrependimento. No capítulo 42 do mesmo livro, verso 10, Deus se diz arrependido do mal que fizera ao povo. Em Amós 7:3, outra crise. Três versos adiante, a crise se agrava... Caramba, que temperamento! O que é isso? É que o povo gosta de emoção.
Ao longo de toda a Bíblia, um livro diz isso e outro aquilo. Desabono em cadeia e o clero ajusta tudo para dar colheradas de doutrinas para os ingênuos necessitados de sonhos. O livro de Êxodo diz que Moisés recebeu as leis no Monte Sinai, já em Deuteronômio, ele teria recebido em Horebe. Em Deuteronômio, Arão morre e é enterrado em Moserá, mas em Números, Arão morre no monte Hor. Em Deuteronômio, Deus permite que se tome bebida forte; em Levítico, o uso de bebida forte é proibido.
Em Deuteronômio, Moisés, um poço de sabedoria, determinou que os israelitas poupassem a vida dos prisioneiros e os fizessem escravos, mas em seguida mandou matar todos. Era inspirado, o escolhido de Deus... A conclusão de Moisés foi de que o grau de pecado deles não podia ser suportado por Deus. Mas por que as abominações dos israelitas, também terríveis, eram suportáveis? Se você decidir comer maná por quarenta anos vai descobrir!
Caso pitoresco na Bíblia é a ridícula defesa dos fundamentalistas de hoje em relação ao voto de Jafté[60]. Na lenda bíblica da batalha contra Amon, Jafté teria feito um voto a Yahweh, caso vencesse: ofereceria em holocausto quem saísse pela porta da sua casa ao seu encontro. Diz a Bíblia que foi a sua filha! Jafté, então, não pôde voltar atrás na sua palavra, oferecendo a filha em holocausto. Mas os sectários, defensores do Livro, insistem que o holocausto se referia à preservação da virgindade da filha e não ao sacrifício da sua vida. Engraçado é que qualquer dicionário diz que holocausto é sacrifício expiatório, imolação. Ainda que fosse a virgindade o mérito, os redatores do Livro deveriam usar melhor as palavras. Agora, à conclusão – veja-se o brado de Jafté depois de rasgar as próprias vestes em desespero: “Ai! Ai! Filha minha! Tu me prostraste em angústia! Tu estás entre os que me fazem infeliz! Fiz uma promessa a Yahweh e não posso recuar!”. Todos os anos, as filhas de Israel iam por lá para prantear e lamentar o que acontecera à filha de Jafté. Prantear o que, a virgindade? O resultado dessas contradições pulverizou a cristandade.
As contradições não ficam somente nas palavras, as escrituras estão hiperlotadas de números conflitantes. Em I Samuel 13:5, para dar continuação às brigas com os israelitas, os filisteus reuniram um exército com trinta mil carros de guerra e seis mil cavaleiros. Como teriam sido feitos esses carros? Na história de qualquer povo da Antiguidade, jamais houve registro de tantos carros de combate. Nem mesmo nos grandes impérios.
Na visão dos hebreus, o todo-poderoso precisava de uma morada. O livro de I Reis 8:12, diz que Deus habitaria nas trevas. Em II Crônicas 6:1, Salomão diz que o Senhor habitaria nas trevas. Já em I Timóteo 6:16, Deus habita na luz inacessível. Bem, Salomão declarou que edificara uma casa para Deus, justamente porque o todo-poderoso habitava nas trevas. Depois, o Senhor teria aparecido a Salomão, dizendo-lhe que ouvira as suas orações e escolhera o templo para o seu local de sacrifícios... O templo, assim, fora escolhido e santificado. Mas tudo mudou com o tempo. Em Atos 7:48,49, lemos: “Mas o Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens, como diz o profeta, o céu é o meu trono e a terra o estrado dos meus pés. Que casa me edificareis? Diz o Senhor: ou qual é o lugar do meu repouso?”. O Eterno mudou de ideia.
Em I Samuel 17:50, diz que Davi feriu Golias e o matou. Em II Samuel 21:19, afirma que foi El-Hanã quem matou Golias. Em I Samuel 17:54, Davi teria levado a cabeça de Golias para Jerusalém. Mas Davi só foi para Jerusalém muito tempo depois, quando a conquistou, de acordo com o livro de II Samuel 5:6-9. Será que Davi guardou a cabeça de Golias embaixo da cama?
Números novamente. No livro de I Reis 4:26, diz que o rei Salomão tinha quarenta mil cavalos. Em II Crônicas 9:25, fala de outra história: apenas quatro mil cavalos, o que, para mim, já são cavalos demais para um rei de um povo paupérrimo. Os sectários biblistas, entretanto, também gostam de jogar a culpa nos copistas antigos, para continuar com o uso do rótulo palavra de Deus. Sobre a lambança dos copistas já falamos o bastante, mas eles também são alvo dos protetores do Livro, desde que comedidamente, para que não se chegue a questionar algo mais comprometedor nas escrituras.
Fala-se hoje bastante sobre intolerância religiosa. Imagine-se um grupo religioso do nosso tempo alegar que Deus lhes outorgara o poder de matar outro grupo, também religioso, sob a acusação de crença espúria e idolatria. No antigo livro de Reis, o profeta Elias disse ao povo: “Lançai mão dos profetas de Baal; que nenhum deles escape e lançaram mão deles; e Elias os fez descer ao ribeiro de Quisom, e ali os matou”. Pois é, mas acontece a mesma coisa na época em que vivemos. Na Irlanda há trinta anos, se pudessem, católicos e protestantes arrancariam os olhos uns dos outros. Outro bom exemplo é o mundo árabe com a beligerância do islã; a Índia com seus milhões de deuses; mas relembrando as carnificinas bíblicas, os judeus e palestinos de hoje. A sociedade do nosso tempo jaz pluripartida, pulverizada, mas acredito que de forma irreversível, já que se projeta outra História.
Embora não seja aparente aos sectários, a Bíblia fere princípios básicos, como o da admissibilidade, quando força a crença em coisas absurdas e fantasiosas, a exemplo da lenda do dilúvio. Também, o princípio da razoabilidade, quando em II Reis 2:23-24, o profeta Eliseu, a caminho de Betel, é ofendido por jovens que gritavam: “sobe, calvo!”. Eliseu os amaldiçoou e, por fim, saíram duas ursas do bosque que despedaçaram os garotos. Interessante é o fato da ocorrência de ursos na região desértica e um bosque em tal lugar. O mais curioso é que ser chamado de careca, com resposta de carnificina, não é nem um pouco razoável, nem dentro da imbecilidade antiga. Mas Deus não se discute.
Em II Reis 20:11, Ezequias, servo do Altíssimo, teria adoecido de morte. Segundo o texto, veio a ele o profeta Isaías com a ordem para que “fizesse os biscoitos para a viagem”, pois sua hora era chegada. Então, Ezequias entrou em oração, lembrou a Deus que andara de coração reto no mundo e chorou. Deus, assim, teria se comovido, repensado a situação e concedido mais quinze anos de vida a Ezequias, sendo o “ponteiro” do relógio de sol de Acaz retrocedido em dez graus. Mas que ponteiro? O ponteiro era a sombra do pino que compõe o relógio de sol! Por que razão um deus, concebido como onisciente, privilegiaria um sujeito com quinze anos a mais de vida, enquanto milhões de crianças morrem a cada instante no mundo da maneira mais injusta concebível? As leis físicas do universo têm que ser mudadas em benefício de um indivíduo qualquer apenas porque se intitula filho de Deus? Se for assim, isso não passa de um mingau teológico!
Para que a separação do “povo de Deus” fosse perfeita, o Livro teria que impedir o casamento dos hebreus com outros povos. Acontece que essa prática sem amor e discriminatória persiste até os nossos dias. Para suavizá-la, os crentes de hoje puseram o nome nesse princípio cretino de jugo desigual. Formidável, a manutenção dos grupelhos santos depende disso. No livro de Esdras 10:10-44, os israelitas expulsaram suas mulheres de casa porque não pertenciam ao povo de Deus... Já o apóstolo Paulo corrigiu o erro, dizendo: “Se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em habitar com ele, não a deixe”. Mas a realidade é bem outra: no meio evangélico, quem casa com incrédulo vai ter problemas pela quebra das regras. Embora eles digam que não há regras, elas permanecem veladas, tornando-se bem piores. É preciso, portanto, que o corpus eclesiástico permaneça homogêneo. Pertencimentos.
A Bíblia, por ser um livro heteróclito, é conflitante em assuntos essenciais, por isso ela cai em descrédito a cada dia. Por exemplo, no livro de Salmos 37:25, o salmista diz: “Fui moço, e agora sou velho; mas nunca vi desamparado o justo, nem a sua descendência mendigar o pão”. É isso, porventura, o que vemos? Se visitarmos uma favela hoje, a maioria dos seus moradores é cristã. Quando, raramente, conseguem comprar um carro caindo aos pedaços, colam um adesivo no vidro traseiro: “Este Jesus me deu”. Depois, desamparados, muitos cristãos morrem na imundície dos hospitais públicos. Seria uma bazófia do rei Davi? Os filólogos modernos, entretanto, afirmam que esse salmo jamais foi escrito por Davi. Alguns dirão: mas essa é uma promessa para o povo judeu! Bem, então, o cristão não é filho de Deus? Ih... Acho que se eu fosse salmista hoje, modificaria o tom: “Fui moço e agora sou velho, mas nunca vi um judeu na favela”...
Um salmo diz que “Deus não dormita, nem dorme”. Já o Salmo 44:26, declara: “Desperta! Por que dormes, Senhor? Acorda! Não nos rejeites para sempre”. Volta e meia, retorno às afirmativas de Nietzsche sobre a morte de Deus – mas o Criador não morreu de fato, apenas ficou sonolento. A verdade é que o Livro não nos convida a pensar, antes nos conduz à fé cega, longe da reflexão e do pensamento puro que a filosofia nos empresta. Tanto nos impede de pensar, que coisas absurdas em nome de Deus até nos fazem perder o juízo de valor que cultivamos pela vida afora. No livro de Salmos 137:9, lemos somente isso: “Feliz aquele que pegar em teus filhos e der com eles nas pedras”. Se na época de Gutemberg existisse o Juizado da Infância, sua oficina gráfica seria fechada, a leitura da Bíblia proibida e o patrão preso.
No evangelho de Mateus 20:29-34, temos o relato da cura de dois cegos em Jericó. Já em Marcos 10:46-52 e em Lucas 18:35-43, apenas um cego fora alcançado pela cura. Mateus tinha predileção pelo número dois, pois anteriormente já mencionara o episódio de dois endemoninhados, enquanto que Marcos e Lucas afirmaram que era apenas um possesso gergeseno. Se o autor do evangelho de Mateus estiver certo, foram mais porcos perdidos pela legião que os incorporara – pobre dono dos porcos. Seriamente, como vamos ficar de braços cruzados deixando os símplices serem enganados?
Os evangelhos, em geral, contradizem-se em detalhes que se tornam grandes. Ainda que os defensores do Livro ab-roguem as contradições, dizendo-as sem importância em relação ao todo, com um mínimo de erudição, sabe-se que isto é uma sofistaria teológica. Cá entre nós convenhamos, de péssimo artesanato dialético, mantido por infinitos remendos fundamentalistas, aplicados por séculos na prática de cópias do Livro por meios ineptos e dolosos. A Bíblia, aliás, fala de remendos.
Mateus diz que Jesus anunciou a sua volta depois da Grande Tribulação[61], Lucas já nega: seria estabelecido antes o “tempo dos gentios”. Mateus e João afirmam que Pedro negaria a Cristo três vezes antes que o galo cantasse uma vez. Marcos já fala que isso se daria antes que o galo cantasse duas vezes. Outra contradição: as inscrições sobre a cruz são registradas com texto diferente em cada evangelho... Mateus expõe os dois malfeitores, que teriam sido crucificados com Cristo, lançando-lhe ofensas – Lucas diz que apenas um ofendera o Mestre, pois o outro teria se arrependido. Sobre a ressurreição de Cristo, Mateus declara que só um anjo estava no sepulcro, mas para João seriam dois anjos. No evangelho de Marcos, Jesus faz a promessa de que receberíamos tudo segundo o grau da nossa fé, mas o apóstolo Paulo pediu a Deus por três vezes que lhe fosse afastado um espinho da carne e Deus não o atendeu. Por quantas vezes só nos restou o silêncio de Deus? Falta de fé? Claro que não, nossa mente foi programada pela religião para que aceitássemos a culpa total.
Os evangelhos de Mateus e Lucas são talhados de modo destrambelhado nos pormenores para que se complementem sobre o nascimento de Jesus. O ponto que precisa ser ressaltado a todo custo se refere ao nascimento virginal do Messias e a necessidade de ter ocorrido em Belém. Por quê? Porque no livro de Miqueias 5:2, há uma profecia de que um messias viria de Belém, uma vez que era a terra de Davi, rei de Israel: “E tu, Belém Efrata, posto que pequena entre milhares de Judá, de ti me sairá o que será senhor em Israel, e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”.
Ora, é sabido que José e Maria eram de Nazaré, assim como Jesus, mas foi preciso adaptar os fatos para gerar um ponto teológico fundamental. Para tal, se fez necessário um motivo forte que constatasse a presença deles em Belém. Depois, o casal e o filho teriam que sair da cidade em fuga para o Egito. O motivo era a criação de um episódio bíblico que não tem nenhuma prova histórica: a “matança dos inocentes”, pelo rei Herodes, em Belém. Toda criança do sexo masculino, até dois anos, deveria ser morta através do decreto do rei. Por que, então, José e Maria foram para Belém, onde Jesus teria nascido? Pela razão de outro fato, talvez inventado, pois não existe nenhum registro ou prova histórica de sua veracidade: o decreto do imperador César Augusto, que criava um censo no império e determinava o retorno de cada cidadão à terra dos seus ancestrais para se apresentar aos censores. José tinha como ancestral a Davi, logo, teria que ir a Belém. Só que Davi existira, hipoteticamente, uns mil anos antes de José! Enfim, um esforço imenso para que Jesus nascesse em Belém por causa de um versículo escrito por Miqueias... O profeta do Antigo Testamento jamais poderia imaginar que seu texto fosse canonizado e se tornasse tão importante na confecção do cristianismo, mesmo com interpretação duvidosa.
O conflito de historicidade se instala quando Mateus sustenta que, após a matança dos inocentes, a família teria fugido para o Egito, enquanto que, no relato de Lucas, eles teriam seguido direto para Nazaré... Mesmo que os evangelhos de Mateus e Lucas pareçam se completar em relação ao nascimento do Messias, na verdade representam contradições mais significativas do que a maioria das pessoas imagina e continua a dar crédito.
A questão das genealogias de Jesus, comparadas nos evangelhos de Mateus e Lucas, por serem diferentes, se tornam estranhas. Embora tenha feito comentário anterior, vale reiterar. A genealogia em Mateus retrocede até o rei Davi e, depois, até Abraão. Mas que história pode ser essa se José não era o pai biológico de Jesus? Maria não descendia de Davi, mas José sim. A genealogia de Lucas retrocede ainda mais: chega até Adão e Eva...
Sobre ascensões, no evangelho de Lucas 24:50-51, diz que Jesus ascendeu aos céus estando em Betânia, entretanto, no livro de Atos 1:9-12, declara que esse evento ocorreu mesmo no Monte das Oliveiras, em Jerusalém. Estudioso do tema, o Barão de Holbach[62], dizia que a crença em qualquer ser superior é o produto do medo e, em certa ocasião, quando foi indagado sobre o assunto ascensão, respondeu de forma geral: “O que foi dito sobre Deus é ininteligível ou perfeitamente contraditório; por esta razão, deve ser uma hipótese absurda para todo homem de bom senso”. Como é possível uma religião que não pode ser discutida? Bem, por isso se chama religião.
Em João 14:28, está escrito: “O Pai é maior do que eu”. Como o Pai pode ser maior se Jesus está colocado como igual a Deus? Deus buscou acomodar a situação: inspirou os seus santos bispos, no concílio de Niceia, para repetirem assim direitinho: “Jesus é Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado e não criado, consubstancial ao Pai”. No segundo concílio da Igreja, o de Constantinopla, em 381 d.C., o imperador Teodósio ajudou a bispalhada a confirmar a Trindade. Finalmente, no quarto concílio, o de Calcedônia, em 451 d.C., fecharam a questão trinitária em definitivo. São três em um – uma família que não se discute e, quem contestar, é porque não foi escolhido.
Sobre ressurreições, convém falar de Lázaro. O que me deixa boquiaberto é o nível da discussão protestante, cenário em que tudo mais se assemelha a um jardim de infância das ideias. Como os argumentos são primários... Quanto ao hipotético Lázaro, no evangelho de João 11:44, lemos: “E o defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço. Disse-lhes Jesus: desligai-o e deixai-o ir”. O que me deixa pasmo não é a discussão sobre uma ressurreição dessas, mas a apologia que os crentes fazem de tal acontecimento, tecendo defesas bobas, por exemplo, o fato presumido de ele ter saído do túmulo aos pulinhos depois de “escorregar” da tábua em que o teriam depositado, uma vez que a múmia em questão estava com as mãos e os pés amarrados...
Para encerrar essa parte de leitura sofrida, falemos da castração santa periapical, conhecida por circuncisão. O apóstolo Paulo, com as próprias mãos, circuncidou a Timóteo para fazer política com terceiros. Paulo, porém, foi quem mais atacou a circuncisão nos tempos bíblicos, ao alertar sobre a sua total ineficácia para alcançar a salvação. O apóstolo dos gentios se dizia irrepreensível e acusava Pedro de ser repreensível, pois o resistira na “cara”, mas o cristianismo tem as suas bases fincadas na teologia de Paulo. Pergunto, então, por quê? Por causa de uma visão improvável? Uma interpretação pessoal? Será que não recebemos do apóstolo uma fetichização abscondita dos símbolos judaico-cristãos? Assim dizendo que os fetichismos se embutem no molho metafísico e na incultura religiosa.
Na Bíblia encontramos milhares de remendos, desvios da história, filologia conflitante, adaptações, enfim, até fraudes inseridas pela própria Igreja. Para continuar com o discurso sobre contradições, seria preciso escrever mais uns dez volumes como este, e ainda acho pouco. O compromisso é com a ideia do produto livro, que foi usado para plantar a essência do monoteísmo. O Livro, então, foi inventado e impingido como “palavra de Deus”, porque se usou para tal feito o desvio cognitivo de toda a humanidade.
Uma visão de futuro
O sintoma agudo do desvio cognitivo não é como o nosso cérebro constrói as crenças, mas como as transforma em verdades. Falo aqui sobre o risco fatal da inferência paradigmal injuntiva – a construção de padrões seguidos do ato de conferir significado aos padrões absorvidos pela mente. Pelo fato de cultivarmos nossas verdades empiricamente (somos cuidadosos com isso), em geral ocupamos toda a existência nessa tarefa de delimitar fronteiras cognitivas e, então, sucumbimos à equivocidade dos conceitos mal formulados. Prosseguimos no erro.
O cérebro “quer” que nossas mentes adotem uma crença qualquer para que a confiança emocional em algo se estabeleça positivamente. Só um esforço imenso de reeducação neuronal pode preparar o indivíduo para enfrentar os ataques dos desvios da mente. Por exemplo, a ciência não reconhece um deus fora do espaço-tempo (tampouco dentro dele), porque ela só trabalha com elementos do nosso mundo de perceptos. A ciência atua no mundo natural, não no sobrenatural. É nisso que temos de bater e rebater, plantar na mente, criar uma segunda natureza que nos ajude no apelo à razão. Acostumarmo-nos a examinar tudo com abordagem científica, enfim, criar um hábito de exclusão de equívocos de cognição para não cairmos na rede do passado.
A religião se constitui como fato social e existe para fortalecer o ideal comunitário, o espírito de rebanho, fixando normas morais para os indivíduos. Uma nova visão, entretanto, começa a nos acenar com postulados perturbadores: a moral se desvincula de Deus e deixa de ser um problema teológico. Fala-se nos dias presentes em ateísmo pós-cristão. Uma forma de higienizar a antiga mácula do cético imoral, perigoso, imundo e sem ética. Seria a supressão das práticas religiosas com a adoção do modelo de moral cristã? Se os religiosos podem lançar mão dos seus familiares valores cristãos, por que não os céticos abraçarem a essência da moral cristã? Vamos por aí? O mais importante é a moral em si, de interpretação transcendente ou não e o resultado final é o que conta. O ateísmo pós-cristão talvez seja mais pragmático, pois não passa pelo crivo do dogma. O cumprimento de uma ética sem punição do além, mesmo porque a aplicação da norma moral é desse mundo, não é extensiva ao além... A exclusão da sanção divina no lugar da adoção da responsabilidade social, junto com a conversão ao esvaziamento do ego. Não aquela coisa tautológica do passado que virou pregação corriqueira dos epíscopos já idos. Ninguém vai anular seu próprio ego de forma voluntária, pois ele é uno e imanente. Como, então, solucionar essa imbricação de conceitos? Com a atitude de adestramento neuronal voluntário para minorar os desvios da cognição, visando à responsabilidade social e o fim da incultura religiosa. Buscando a recuperação do espírito de comunidade perdido no hoje, não para celebrar um tipo de ágape moderninho, mas para participar de um lanche social, tendo por objetivo a sobrevivência da espécie aqui. E tudo isto pode ser alcançado na plena compreensão do cooperativismo!
Enquanto o cristianismo estabelece nesse mundo o valor do pedágio para a eternidade e situa suas perspectivas para o além-mundo, o ateísmo pós-cristão anuncia que os valores morais não são propriedade exclusiva da religião. Antes, precisávamos dos seus modelos, até descobrirmos que sua lógica é extremamente defeituosa. É para ser assim, porque a dogmática foi sempre elaborada e impingida sub-repticiamente. Agora, contemplamos o declínio da fé, e o ceticismo pós-cristão se empenha na produção de significados sem superstição. Não se trata de um debate acrimonioso em torno da religião, mas uma consideração sobre o declínio da fé.
Na verdade, essa ideia de ateísmo pós-cristão já encontra seus esboços no início do século dezenove, na obra de Feuerbach, Auguste Comte, Nietzsche, Walter Benjamin e, mais recentemente, em Michel Onfray. Nietzsche pretendia infundir os ideais seculares como a arte, a filosofia, a música, com seus valores próprios, no lugar da moral cristã desgastada pela incultura. Não teve, porém, sucesso no seu tempo, pois era um individualista quixotesco. Não contou com a empresa, com a força da instituição para divulgar suas ideias, porque a Igreja detém o status corporativo que transforma as necessidades dos fiéis em grandes montanhas de dinheiro. Temos aí a vantagem indestrutível da instituição, a utilização de amuletos que eternizam seus dogmas: a cruz por exemplo. Com isso, tudo é branding – o logotipo do Vaticano existe desde a Idade Média –, os designers da cúria se incumbem do trabalho de atualização e os sacerdotes se empenham na compensadora tarefa de saciar as necessidades da alma. Atente-se para o adestramento do tom de voz melífluo dos padres às autoritárias pantomimas dos pastores – a instituição protege as emoções que precisamos cultivar! Os asseclas macaqueiam os seus líderes e patrões e a massa não vê.
O momento que vivenciamos no mundo é marcado por uma ascensão devastadora do capital e pela ditadura dos mercados. Também a volta da ideia marxista com outras roupas, pois caem os sistemas, mas as ideias persistem. Isto é sintoma de ceticismo. Na concepção de Feuerbach, as interações humanas, outrora planejadas por Deus, deveriam ser administradas pelo “homem do amor” e não mais pelo Eterno. Segundo o filósofo, após o abandono da religião e da Bíblia, o homem teria que se fixar no amor, porque, segundo ele, “sem amor não há verdade e só tem valor quem tem valor”. Ora, esse conceito existiu há muito tempo quando Deus foi substituído pelo homem do amor. Hoje, na hipermodernidade, o conceito desse homem do amor deu lugar à deificação do capital que nos infelicita e oprime – o capital como religião. O homem do amor morreu na praia! Veio o homo ludens[63], não mais o de Feuerbach, mas o completamente vazio de amor, para derramar sobre o mundo o sentimento tanatofílico.
Ainda que impregnada da forte carga de ateísmo para a época, a filosofia de Ludwig Feuerbach apresenta nuance diferente: o real para ele é pleno do que é sensível, pois só o que é sensível nos mostra o objeto no seu sentido verdadeiro e único – a origem da possibilidade do amor. Depois, ele se volta para a fé, que parece ter-se inviabilizado pelos conflitos existenciais que povoavam sua existência de pesadelos.
O ateísmo pós-cristão, blasonado pelos filósofos de hoje, também é conhecido como ateísmo pós-moderno. Mais certo seria o termo ateísmo pós-moderno, porque todo ateísmo cristão atual é pós-cristão, embora tudo continue apenas como um rótulo da moda. Roupinha moderna derivada do traje filosófico impecável de Feuerbach. Acontece que na descoberta do poço sem fundo da existência, uma vez privado do mapa da religião, o homem começa a dar voltas no deserto. Quando sua compreensão não alcança o significado de apenas-vida-biológica, o tal do borrão no nada, de saber que sua vida é um acontecimento biológico banal, ou quando se instala o medo, esse mesmo homem retroage, querendo ir para o céu a todo custo. Se não, resta abraçar esse tipo de ceticismo sem retorno, indo de encontro a um possível hedonismo ético. O que mais? Por isso, tenho minhas dúvidas sobre a aplicação dos valores da religião, da moral cristã sem o Cristo.
Será que levaríamos a termo esse intento de tomar emprestada a moral cristã hoje de maneira profunda, ou seria um verniz comportamental apenas para inglês ver? Qual seria o regulador da nossa vida, ao ser Deus excluído do programa por completo? Compromissos com o ego e propósitos pessoais se quebram fácil e nos revelam que não somos como imaginávamos. A moral, porém, não pode ser teológica per si, há que ser racional.
Na catedral, um homem religioso entra e se prepara para a contemplação. Cheiro típico, emoção abafada. Silêncio, um monge à distância com a tonsura aparente às vezes. Lugar onde os mais abastados deixam somas gordas, talvez para apagar o passado de como e quando as somas foram obtidas. Obras de arte sólidas que só existem em museus, influxo catártico, pois em museus ninguém ajoelha ou fecha os olhos. Ali é para tal, e os populares precisam disso. Sentimos que a imagem salva, já que naquele ar faz o papel redencionista. Historinhas de santos fazem parte da pedagogia aplicada – não exigem que os fiéis reflitam –, apenas acompanhem as narrativas visuais dos mestres medievais, da Renascença, até chegar à Old school[64], porque seduzem mesmo os mais humildes. As imagens produzem compaixão e nos obrigam a caminhar com os santos mártires em devoção até descobrirmos como tudo foi inventado. Mas aí é tarde, pois se não deixamos cair uma lágrima no piso do santuário, pelo menos engolimos a bola da vez. O papel didático da arte sacra e seu apelo emocional já foram demonstrados. Olhamos para o lado e o fiel que está mais próximo oferece a sensação de crença profunda. Vez por outra, ele dá uma olhada de canto do olho para sondar a área e reforçar a fé. Tudo é sensação de bondade eterna e mistério. As colunas estão ali, lembrando-nos da eternidade do processo.
O que observo no didatismo da Igreja de Roma é o domínio da eficácia emocional através dos padrões clássicos. É só pendurar um Picasso ou um Giorgio de Chirico na parede e a devoção vai embora. Parece que o tempo pesa na empresa e todo negócio tem seu lado psicológico para dar certo. Mas o espetáculo é bonito e comove, basta assistir a missa do galo: a quantidade de mármore já esmaga o nosso ego de prazer estético.
Na pintura, os clichês são o segredo: deserto, pescarias, óbolo da viúva, mar aberto, ceias, milagres, anjos, tudo, enfim, resolvido com poucas cores, explorando o chiaroscuro caravagesco e a emoção está garantida. Nas esculturas, basta a concentração nas expressões de espanto, compaixão, ira e, de maneira especial, na expressão das mãos para que o mármore e o bronze convençam os fiéis. Enfim, na arquitetura, a separação do mundo: o gótico como tom maior – grandes espaços que mantêm a atmosfera ideal para a nossa flutuação, a leveza das abóbadas, o peso e a gravidade do assumido compromisso de fé misturado ao festival de fantasias dogmáticas acumuladas por séculos. O gosto da história envolve-nos de vez. Em plena metrópole, entramos numa catedral, saímos da maldade mundana e encontramos o Deus que procuramos do jeito que o império de Roma nos legou em herança, e mesmo que seja através da customização da fé que o Vaticano adotou.
Quando o homem religioso saiu da catedral, alguém que não gostava de arte e seguia os conselhos do fradinho Lutero, bradou: “Tudo aí dentro é vaidade! Para se chegar de verdade a Deus, basta lermos a Bíblia”... Essa é a maior prova de que a nossa mente é manipulada em várias direções, sem que percebamos, em sã consciência, o quanto somos usados pelas pequenas engrenagens de uma grande máquina.
Do protestantismo, então, recebemos o Livro com prioridade absoluta. É muito mais fácil: não tem prazo de validade e vem canonizado... Contém uma teologia mais limpinha de variações, pois o que está escrito não muda. Dispensa beatificações, assim como canonizações de ossos. Mas, em contraposto, trata-se de uma organização que não tem dono e isso traz uma divisão dos infernos. O Vaticano tem dono há muito tempo e seus oponentes são representados por muitas ovelhas e milhões de pastores rivais autônomos. Ainda dizem que é apenas um rebanho para um só pastor... Os pastores são muitos, porque o mercado se amplia e eles não se entendem. Para um, o batismo é assim, para o outro, assado. Para um grupo isso é pecado, para o outro, não. O João daqui vai para o céu, o João de lá, não. Mas eles têm o Livro!
De novo a Feuerbach, na sua visão de que a religião é algo indissolúvel da natureza humana – de consciência abrangente –, ele confere ao judeu-cristianismo uma qualidade antropológica. Nessa exata dimensão, o deus recebe a herança antropológica que lhe dá forma. Ora, nessa linha de pensamento, fica impossível o ateísmo pós-moderno, porque o homem sempre vai ter saudade do deus parecido com ele. A partir do momento, então, que o homem desmensurar o grau de pensamentos e ações em comum com a divindade, liberta-se do deus-pai-humanizado. A possibilidade do ateísmo pós-moderno já se discute. Mas questiono novamente: até que ponto essa ideia pode sobreviver sem o Cristo? Se a razão de toda a moral cristã é o seu criador, como representar o primeiro ato sem ele? Questão de direito autoral? De mais a mais, as outras religiões não se baseiam na moral cristã. Têm seu próprio sistema moral, como o islamismo. Repito e rebato, o momento é para a máxima compreensão do que pode vir a ser o cooperativismo.
Sem Cristo não há moral cristã. Sem o Livro não há Cristo. Ninguém até agora me convenceu de que nossa natureza não é receptiva e preparada biologicamente para funcionar pelo medo do inferno. Vamos e venhamos que essa é a pedra no sapato do cristão, embora fira o princípio de alguns vaidosos que afirmam obedecer a Cristo somente por amor e nunca por medo de perder a salvação, ou ir para o inferno...
O homem que entrou na catedral para buscar o Eterno se deparou com o maior medo até então conhecido por ele: o medo da condenação eterna. Em pouco tempo ele descobriu que as coisas ocultas e erradas, tanto por pensamento ou ação, que deixava de praticar, eram exclusivamente por temor do castigo divino. Das punições aqui no mundo até a fogueira do inferno... Embora seu desejo maior fosse obter a vitória sobre o erro, totalmente por amor ao Eterno, só conseguia êxito quando se lembrava de que poderia ser castigado por Deus se cometesse um erro voluntário. Quando ele entrou na catedral, passou a conviver com a paranoia que acompanha o pacote da religião. Ficou infeliz, mas anunciou ao mundo que, finalmente, conhecera o amor, se libertara e que todos os obstáculos foram vencidos. Agora, através da experiência recente, ele sabe o que significa uma palavra na boca e outra no coração, pois ingressou na religião do Livro. O que estabelece a nova jornada no cárcere.
Na sua obra O futuro de uma ilusão, Freud situa as doutrinas religiosas como ilusões e, portanto, insuscetíveis de prova. Ele afirma que ninguém é obrigado a crer em dogmas, pois compara a crença em doutrinas religiosas a um delírio. Pouco nos sobra de argumentos diante de certas asseverações de Freud: “Se o único motivo pelo qual não devemos tirar a vida do nosso próximo é porque Deus amaldiçoou tal coisa e prometeu nos castigar, então, ao descobrirmos que Deus não existe, certamente exterminaremos o nosso próximo sem pensar duas vezes”. Ele prossegue: “Assim, ou esses indivíduos perigosos terão que ser punidos com rigor e mantidos afastados do saber intelectual, ou então a relação entre religião e civilização terá que passar por uma revisão completa”.
Ao considerar a religião como uma ilusão, reafirmando que o trabalho científico é o único caminho que pode nos levar ao conhecimento da realidade externa a nós mesmos, ao longo de toda sua obra, Freud a finaliza assim: “Nossa ciência não é ilusão – ilusão mesmo seria imaginar que aquilo que a ciência não pode nos dar, poderíamos obter em outro lugar”.
Esse tipo de clericalismo ateu, o ateísmo pós-cristão, que seria a aproximação dos valores da religião para usá-los sem a atitude transcendente, é discutível, pelo menos no que tange às ações íntimas e aos nossos pensamentos ocultos. É impossível a um ateu pós-moderno manter a conduta, nos parâmetros da moral cristã, diante de situações que exigiriam a autenticidade de alguém que crê totalmente na existência de Deus. Pelo fato de que o crente tem, inequivocamente, um vínculo de fé íntimo e profundo com um ser superior. Esse vínculo implica num tipo de temor à divindade que o ateu não conserva. Funciona na esfera neural – no nível da inferência paradigmal injuntiva. É o que já cansei de mencionar: a ocorrência da confirmação emocional da crença, que nos dá a falsa impressão de ter alcançado a paz. Este é o estágio em que a fé se traduz no seu ponto mais alto. Ora, o cético não tem o mesmo fio condutor de sentimentos, sensações e ideias. A já falada adoção da moral religiosa, então, fica na superfície cognitiva.
Por que, desta feita, o ateu pós-moderno tem que percorrer toda uma via-crucis na posse de um processo cognitivo antinatural? Esse modus não pertence a ele, é do devoto: vem acompanhado da razão da fé, que é atributo de quem a exerce. A moral não tem que ser religiosa e, sim, a moral-moral! Segundo Michel Onfray, “a moral não é, portanto, um problema teológico entre os homens e Deus, mas uma história imanente que concerne aos homens entre si, sem nenhuma outra testemunha”. Por que, então, forçar uma herança bíblica no campo da moral secular? Mais uma razão para que o cético não faça empréstimos, pois o dever moral que o homem já tem no subconsciente não vem da religião. Vem dos pais.
O que fazer daqui em diante com a interpretação da moral fora do mundo transcendente? A visão que conservo do futuro como resposta a isto se divide em três estágios: a conscientização do ser humano para a necessidade de eliminar de maneira gradual a ilusão religiosa da sua mente; a busca de uma nova ordem social, como requisito último para a sobrevivência da espécie humana, baseada nessa conscientização; já que deve ser absolutamente consensual entre os homens a ação proposta, essa ideia teria necessariamente que estar fundada sobre um princípio incontestável: o controle da natalidade. Só é possível haver reformulação moral através do controle da natalidade. Da mesma forma que somente é possível o amor, a colaboração, a compreensão e a recuperação da confiança entre os homens com menos homens sobre a Terra. Utopia? Daí, a descoberta do cooperativismo compreendido profundamente.
Repare-se que não aponto reformulação social, quando já vivemos uma época de cinzas sociais. Apenas argumento sobre uma saída para a preservação da espécie humana, a começar pela elaboração de uma base moral sustentada por um princípio – o controle de natalidade. Isto não é ideologia de direita nem de esquerda, é fator de sobrevivência. Não falamos com frequência no ecossistema, em salvar o planeta do superaquecimento e das mudanças climáticas, através da doutrina do politicamente correto? Por que não se fala primeiro em salvar o homem através do controle da natalidade? Fora disso, o que já temos hoje é um modus de devastação da vida humana – a morte em larga escala para dar lugar à natalidade em alta escala. Os sistemas de saúde, a violência urbana, os desastres naturais e os conflitos bélicos não exterminam suficientemente os humanos, como sabem os governos do mundo.
O encaminhamento do fim da fé que conhecemos é inevitável pelo simples fato da religião não se constituir como um fenômeno natural. A religião não é um fator genético, portanto deixa de ser natural. Ela é transmitida através da linguagem e da simbologia própria, fazendo parte de um processo de transmissão pedagógica. Se a religião fosse natural, seria uma questão biológica – ela não é transmitida por genes –, portanto, o simples fato dos filhos seguirem a religião dos pais não guarda relação com a genética. Assim, veja-se: um time de futebol não é uma herança genética, no entanto, o time do pai influencia o filho e, na maioria das vezes, ele segue a escolha do pai pela vida afora.
No dictum, “pior cego é o que não quer ver”, é uma forma de entender como escamoteamos aquilo que percebemos ser verdade. Duvidamos de Deus o tempo todo, mas preferimos escapar de tal posição interior, pois sentimos medo de saber mais e, então, endossamos o Livro como palavra de Deus. O caminho mais fácil, assim, é fazermos parceria com a ignorância em relação à nossa própria ignorância – à preguiça intelectual que nos vitima. E já que anunciaram a morte de Deus, por que ele não foi enterrado?
O fim da fé na religião cristã, como em outras, é inevitável porque os absurdos doutrinários têm prazo de validade, ainda que pareça longo. Há de chegar o tempo em que o povo, por absoluto esgotamento, não terá mais condições de engolir as bobagens de antanho: transfusão de sangue proibida; batismo pelos mortos; até por aspersão, imersão, infusão, profusão, confusão; metafísica de padaria – pão francês que se transforma na carne de um espectro; beatificações com “milagres comprobatórios”; línguas estranhas faladas por mentirosos; ressurreições; profecias neuropatológicas; virgo intacta – a imaculada flutuando no ar rarefeito para chegar ao céu; cura divina de enxaqueca ou dor de dente; povo escolhido; fruto proibido no paraíso e milhões de outras estripulias mágicas, firulas fideístas desnecessárias de comentário. Liames doutrinários encaracolados na nossa vida!
Na sociedade fragmentada e exausta da ultramodernidade, creio que o espírito da religião apenas se poderá manter em estreitos segmentos debilitados – sem o estímulo dos séculos anteriores –, devido ao desgaste massificado do conceito de transcendência. Cada vez mais, será um atributo das classes de mais baixo realce intelectual. Penso que a religião vai continuar, porém nas cabeças mais modestas... Isto porque, em relação à religião do Livro, já acontece um fenômeno semelhante aos tempos de Jesus, quando sua promessa da vinda do Reino não se consubstanciou na época. Fato que provocou uma reinterpretação das escrituras para que fosse adaptado o rumo doutrinário pretendido. No mundo atual, acontece algo semelhante: os que já sofreram mais na vida sabem que não há intervenção dos céus segundo a expectativa individual dos crentes, nem o desenlace apocalíptico tão esperado pelos crédulos da forma como eles sonharam.
Define-se, então, uma dúvida arrasadora na mente dos devotos nos quatro cantos da Terra: “E se tudo aquilo em que acreditamos realmente não for verdade?”... Como resultado, a filiação religiosa passa a ser um incômodo e constrangimento para os que querem se manter crédulos nas instituições, ao tempo em que, na cabeça desses mesmos crentes, isto representa o início da perseguição aos fiéis como previsto nas escrituras. O que fazer para reformar o meu castelo construído de areia? Como aceitar isto?
O desgaste da ideia de Deus já é algo irreversível, pelo simples motivo de ter sido provocado pela própria religião, sobretudo a cristã. Seus representantes macularam o conceito de Deus quando construíram os dogmas cavernosos e fizeram o Livro. Na literatura religiosa, temos o campo mais fértil para a digressão, a fuga do real, passando pelos confetes até chegarmos ao objeto de todas as religiões: a pedagogia do dogma com sua toxidez inseparável.
O dogma vem da dogmática, que vem do sacerdote, que lava o cérebro do devoto e obtém dele a confiança para acreditar que a Bíblia foi escrita por Deus. Esse mesmo sacerdote diz que Darwin é filho do Diabo e que de nada vale ler sobre a evolução. O devoto aceita, então, a palavra do sacerdote, desiste do saber, amaldiçoa Darwin – não porque confie no sacerdote –, ou por ser coisa do Demo, mas porque ele já se acomodou na vida como preguiçoso mental, optando pela ignorância sectária. Eu mesmo, lá bem no passado, realizei uma ilustração em cores para uma revista, ridicularizando Darwin e, hoje, considero-o o maior gênio do século dezenove. Foi, então, construída uma malha defensiva no minúsculo entendimento do devoto, uma massagem adequada na mente, que o deixou mais aliviado, através da cumplicidade do sacerdote. Por isso, é mais fácil ser devoto de qualquer coisa, porque não é necessário nenhum esforço mental. Assim como Darwin nunca disse que o homem vem do macaco, eu afirmo com a máxima certeza de que nenhum intelectual vem do devoto.
O filósofo Daniel Dennett expõe a mecânica de benefícios obtidos pelos poderosos sobre a massa da credulidade: “Todos na sociedade se beneficiam, porque a religião faz com que a vida na sociedade seja mais segura, harmoniosa, eficiente. Alguns se beneficiam mais que outros, mas ninguém pensaria em querer acabar com a coisa toda. A elite que controla o sistema se beneficia a custa dos outros. A religião é mais semelhante a um esquema de pirâmide do que a um sistema monetário; ela prospera oprimindo os mal informados e impotentes, enquanto seus beneficiários a transmitem de bom grado a seus herdeiros genéticos ou culturais. As sociedades como um todo só lucram. Não importa se os indivíduos se beneficiam. A perpetuação dos seus grupos sociais ou políticos se reforça a custa de grupos rivais”. Vemos, assim, a demanda da religião e o seu produto bem explícito nos resultados sociais. No fim, o giro do capital tem a expressão mais sólida.
Toda essa engrenagem embute um moto contínuo que sugere a perpetuação da religião, diante da sua variegada influência social e com a diversão que ela parece proporcionar. Será? Sugere, apenas. É o ponto que ainda sustento: a certeza de que esse mecanismo não será perpétuo, pela razão de estar fundamentado em um Livro projetado para ser visto como santo, porém submetido hoje ao método científico, que impôs nova interpretação historiográfica. O desvalor evidenciado hoje, oriundo do questionamento recente dessa historicidade bíblica, sem dúvida chega ao senso comum, que reinterpreta suas variações e se torna a geratriz de novo fenômeno social.
Mesmo com tais fatos expostos, o impulso religioso do homem não acaba e também a necessidade de confirmação dos padrões emocionais, a menos que se aplique o adestramento neuronal já citado. Aprender a pensar! Ainda que não proceda desse jeito, mas testar o pensamento como se o mundo material, que está diante de nós, seja realmente a única coisa que temos nessa vida. Devemos admitir, sim, que não somos o que, instintivamente, sentíamo-nos tentados a pensar que éramos. A partir daí, então, busquemos o contentamento apenas com o que somos: um evento biológico comum que acontece diariamente com os iguais da nossa espécie por todo o mundo. Simples assim, nascimento e morte no reino animal. Sei que é o mais difícil de alcançar, a renúncia, não como propôs Schopenhauer na sua Metafísica do amor – a renúncia da vontade –, mas a conscientização do processo da seleção natural. Entender o Aqui requer a reconstrução social do Aqui.
Previsões religiosas são, em geral, processos concludentes do senso comum a partir da observação simples, empírica, da vida. E isto é posto num poço de subjetividade. É como a verdade de cada um. Previsões dessa natureza são achismos de pessoas que jogam dados e não justificam diálogo. Mas a visão de futuro em filosofia, mesmo extensiva à religião, com dados científicos coligidos, é algo que merece ser analisado, embora também esteja ao alcance da falibilidade.
No início deste livro, mencionei Carl Gustav Jung a respeito do seu princípio que defende a impossibilidade de penetrarmos na essência dos fenômenos psíquicos e que deveríamos desistir de fazer de um fenômeno um problema intelectual. Com base em Freud, discordo de Jung. Se esse postulado fosse verdadeiro, a psicanálise teria estacionado. É uma visão de mundo apreciável, mas sem o fundo científico de Freud. Tanto é que, na maturidade, Jung declara com exaustão transparente: “Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno da vida e o fenômeno homem são demasiadamente grandes. À medida que envelhecia, menos me compreendia e reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo”. Ao prosseguir, “Não estou certo de nada. Não tenho mesmo, para dizer a verdade, nenhuma convicção definitiva – a respeito do que quer que seja”. Ainda, para terminar, Jung diz: “Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha”. Acontece que Jung sempre me pareceu um homem dividido. Suas crises de transcendência me impressionam justamente pelo mestre da psicanálise que foi. Em Freud, nunca vi desvios dessa natureza.
Jung hesita sobre a vida ter ou não significado. Não. A vida não tem significado. Nós é que temos o dever de infundi-lo na nossa existência. Através de um grande amor, do casamento, dos filhos, do trabalho, da carreira pretendida, ideais artísticos ou científicos, enfim, do que acharmos importante e que sirva para seguirmos em frente. Ao lermos Darwin, vamos perceber que não somos o que imaginávamos ser e que o significado da vida é a própria vida. Jung “deu com os burros n’água”, porque se afundou na metafísica. Sua obra, se comparada a Sigmund Freud, é algo tão tolo quanto os fundamentos das transcendências.
Embora esteja a discorrer sobre minha visão em relação ao futuro da religião, isto pertence ao meu mundo perceptivo. Para qualquer pessoa que investigue algo, é como bater uma falta do meio de campo, uma ação repleta de fatores imprevistos. Mas insisto em afirmar que o cristianismo tradicional sofrerá um abalo sísmico, porque, com a evolução do método histórico-crítico, a Bíblia despertou suspeitas sérias. Novas formas de cristianismo surgirão, alternativamente, com a supressão dos dogmas, voltadas para os menos favorecidos de intelecto, o que já acontece através dos “apóstolos” emergentes. Será a época da bricolagem doutrinária cristã. As instituições que desfraldam suas bandeiras doutrinárias mais tradicionalistas podem desmoronar por causa do descrédito das escrituras. Judaísmo e islamismo farão parte dessa mudança por também serem religiões do Livro – eles têm a Torah e o Corão no bloco da obsolescência dos concorrentes posteriores.
O antídoto de maior monta em relação à religião é, sem dúvida, o processo de secularização que atingiu as fés do mundo. O que foi imposto no Ocidente como sagrado há séculos, não tem mais o mesmo significado e isso concorre para a demolição do edifício cristão. Outrora, a Igreja de Roma era forte – inexpugnável e impunha dogmas. Hoje, papas são substituídos pela pressão de uma sociedade pluripartida, divergente e amoral.
O que mais me impressiona nessa sociedade patética, até realço o termo, é a pluralidade de pensamento dogmático que ela nos demonstra. Refiro-me, também, ao desdobramento do pensar religioso, repetitivo e confuso. Mercantilista e doloso. Esse fator debilitante, fenomênico-social, é que deveria nos preocupar em relação ao futuro. Por certo, é a fragmentação social, a pluralidade doutrinária galopante, que se projeta no fator religioso atolado na corrida do ouro, empreendida pelo clero.
A Igreja, aliás, se preocupa sobremaneira com a comunidade física, com o corpo, que soma para manter a aglutinação do grupo através das ofertas, dízimos, celebrações e trabalho voluntário. A igreja finge que se preocupa com o interior do fiel, com sua relação com Deus, mas isso é a última coisa com que ela se preocupa, pois não tem controle sobre a íntima relação do devoto com a divindade. Logo, é o corpo que interessa ao clero. Mas, como animistas obcecados, pagamos para ser enganados: somos fiéis nos dízimos e nas ofertas. Para as fantasias do além, nosso cérebro hospedeiro fica feliz quando o clero repete: “Jesus te ama”, mas a sacolinha e os gazofilácios estão de plantão.
Meu entendimento sobre o futuro da religião traduz-se nos efeitos da pluralidade de conceitos individuais, egoísmo, fome do ouro e absoluta falta de amor de uma sociedade decadente, em imbricação, que segue uma linha de descenso, sem retorno. O cristianismo subdividido ao extremo; o judaísmo no seu invólucro de gesso milenar e o islamismo na sua beligerância doentia. Os três monoteísmos estão desqualificados, devido aos tijolos ruins que foram usados na construção dessas religiões de obsolescência completa. Sobretudo a má-fé na construção dos mesmos, pois não previram o futuro. Três monoteísmos com seus livros velhos, que deveriam ter sido arquivados na biblioteca de Alexandria antes de Júlio César passar por ali, em 48 a.C.
Comunismos e capitalismos naufragaram enquanto idealismo puro. Aliás, para mim, o comunismo nunca existiu, porque jamais passou de utopia. Alguns setores acadêmicos tentam revitalizar o marxismo com novas roupas de domingo, mas não foi a casa deles que caiu, foi o muro! Há muito tempo... E um muro feito para aprisionar os que estavam por lá, enquanto que as cercas na América existem para controlar a entrada de imigrantes ilegais... Do comunismo queriam fugir, em busca do capitalismo. Quanto ao capitalismo, é o que temos. Com a selvageria e injustiça típicas, é o meio natural por excelência, correnteza em que todos querem nadar. Ora, há muito percebemos que o Estado é sujo demais para administrar o capital nosso de cada dia.
O pior no capitalismo é que ele não existe sem a religião, precisa dela para que a riqueza seja transferida para as mãos das elites e dos monstros do clero. Nessa ditadura do capital, o deus da religião atua no palco da carpintaria humana, através da ideia da multiplicação abençoada dos bens materiais das “elites globalistas fiéis” e da prosperidade como vontade divina. Esse deus recebe, então, a sua parte dos dez por cento e ofertas como comissão. Abençoa a construção dos seus templos, administrados pelo clero, com o apoio do séquito angelical, que dá uma mãozinha nas relações consoladoras com os fiéis do proletariado, pois o pobre economiza água para o rico gastar.
Quem, então, representa o capitalismo e recebe das mãos do clero a parte contratada na transferência das riquezas acumuladas pelo povo? Os cleptocratas[65]. Um compartilhamento comercial, societário, sem a perda da ideologia. São eles que tecem o governo secreto do mundo, alimentado pela ignorância dos ingênuos, que precisam do imperativo ético de que exista alguma coisa e não somente o nada. Os crédulos querem esse imperativo e não adianta demovê-los. São teimosos, pagam pela ilusão e mantêm a aliança entre os cleptocratas e o clero.
Os crédulos não enxergam o pano de fundo político e cruel que são obrigados a suportar. Os fiéis se satisfazem com a expectativa ilusória de ter um lugar preparado no céu para eles e pouco se importam se isto pode ser falso. E, se a cleptocracia impera no mundo, em todos os setores, devemos aos crédulos incorrigíveis.
Na construção da porne[66], que compõe o binômio “Estado e seita”, as Escrituras sagradas têm o peso total. Através da palavra, registramos em páginas o pensamento, as ações antropopáticas e as idiossincrasias do deus formatado pelo judeocristianismo. Nos politeísmos não era necessário o registro em livros, pois não havia dogmas nem doutrinas. Não estava delineado ainda o conceito de pecado dos monoteísmos. Cada um escolhia o seu deus para se relacionar da forma mais estranha e segredada possível. Mas, no monoteísmo, uma vez as normas coligidas e registradas no Livro ficaram santas – viraram teologia! Apedeutas bem merecem.
No exercício entre católicos e protestantes de comer as carnes uns dos outros com cuidado mútuo, sem chamar a atenção da sociedade pelo canibalismo doutrinário, a Bíblia sempre teve um foco diferente entre eles. Para os católicos, o que importa é o conjunto da teologia da Santa Sé e seu gerontocrata ser obedecido. A Bíblia vai de suporte. Já os protestantes, têm o Livro no lugar do papa: é o poder da sola scriptura[67]. O primaz dá lugar à interpretação do freguês. Sobre tal polêmica, o jornalista americano Henry Louis Mencken, que escreveu o Livro dos insultos, foi prático no que deixou: “Os únicos protestantes realmente respeitáveis são os fundamentalistas. Infelizmente, eles são também bastante idiotas”. Discordo de Mencken, pois se fossem bastante idiotas não teriam conseguido passar por cima da autoridade do pai da Igreja romana e permitido que os adeptos do protestantismo estabelecessem a maior das concorrências, ao elaborar as próprias doutrinas... Eles podem ser imbecis, mas não idiotas.
A Santa Sé é una, corpo blindado. Não permite interpretações secundárias. Os filhos de Lutero ficaram soltos e a característica principal desses devotos é como convivem com a concorrência... As doutrinas são as mais doidas e variadas. Na Santa Sé, quando sai a fumacinha da chaminé, é porque Deus já nomeou outro senhor de idade para administrar aquela beleza cheia de arte. Nos feudos protestantes, são os pequenos senhores, sem nenhuma expressão intelectual na maioria das vezes, que interpretam o Livro ao bel prazer e administram felizes os rebanhos. Sem cajado, mas com belas gravatas, belos carros e suas mulheres não tão belas. Qualquer coisa, os senhores feudais pegam o livro, que eles chamam de espada e cortam a alegria do fiel, dizendo que no cristianismo é preciso aprender a ter paciência. Se Deus não atendeu dessa vez é porque o tempo dele é outro, ou talvez exista algum pecado oculto no reino das margaridas...
Ainda falando sobre a minha visão do futuro da religião, temo que, enquanto houver pelo menos dois seres humanos sobre a Terra, a superstição religiosa continuará a existir. Digo dois seres, pois sempre haverá o trabalho pedagógico de um indivíduo tentando convencer o outro, até com macaquices.
Cheguei à conclusão de escrever este livro pela necessidade de provar minha honestidade nos assuntos que dizem respeito à religião, sobretudo aquela que ocupou a maior parte da minha vida. Cansei de reverenciar a pastorada, mais carnais do que os padres da própria Igreja romana. De tempos para cá, analisei melhor a ciência em relação à fé e percebi que com a fé desenvolvemos um tipo confiança banal e rasteira, entretanto, com a ciência, a certeza. Prefiro mil vezes ter certeza, antes de ter confiança naquilo que me dizem ser o certo, pois só creio no que percebo e constato.
Optei, assim, por investigar o Livro da religião judaico-cristã, que se tornou, aos poucos, ineficaz na minha vida e, como resultado, a maior decepção que já passei até hoje. Pelo menos, enfrentei o desafio de questionar a Bíblia e me sinto muito melhor do que antes. A diferença é que hoje sou livre.
Christopher Hitchens[68], brindado por ser conhecido como um dos “quatro cavaleiros do Apocalipse”, um herói na luta pela verdade, declarou no seu livro God is not great: “Após o terrível tsunami da Ásia em 2005, e depois da inundação de Nova Orleans, em 2006, homens bastante sérios e instruídos como o arcebispo de Canterbury foram reduzidos ao nível de camponeses bestificados ao agonizarem publicamente sobre como interpretar a vontade de Deus na questão. Mas se a pessoa faz a suposição simples, baseada em um conhecimento absolutamente certo, de que vivemos em um planeta que ainda está resfriando, tem um núcleo fundido, falhas e rachaduras em sua crosta e um sistema climático turbulento, então simplesmente não há a necessidade de tal ansiedade. Tudo já está explicado. Eu não consigo entender por que os religiosos relutam tanto em admitir: isso os livraria das perguntas fúteis sobre porque Deus permite tanto sofrimento. Mas aparentemente esse incômodo é um pequeno preço a pagar para manter vivo o mito da intervenção divina”. Hitchens prossegue no discurso, agora ressaltando a condição humana: “Aqueles de nós que tinham buscado uma alternativa racional à religião tinham chegado a um limite que era comparavelmente dogmático. O que mais esperar de algo que tinha sido produzido pelos primos mais próximos dos chimpanzés? Infalibilidade? Assim, caro leitor, se você chegou a este ponto e descobriu sua própria fé abalada – como eu espero –, estou disposto a dizer que de certa forma sei pelo que você está passando. Há dias em que sinto falta das minhas antigas convicções como se elas fossem um membro amputado. Mas em geral me sinto melhor, e não menos radical, e você também irá se sentir melhor, garanto, quando se livrar da doutrinação e permitir que sua mente livre pense por conta própria”. Hitchens morreu há pouco tempo e, certamente, todos os devotos do cristianismo dirão em uníssono que ele foi para o inferno. Mas existe outro fora daquele em que vivemos? A atitude mais fácil e perniciosa que existe é julgar o próximo.
Meu livro não foi escrito para questionar a existência de Deus, mas para discutir a construção da Bíblia. Ninguém conseguiu provar até hoje a existência ou a inexistência de Deus, nem eu vou perder tempo com isso. Para mim, se Deus existe, não é da forma que aprendemos. Os homens inventaram a Bíblia e dizem que é a palavra de Deus para poder justificá-lo. Não acredito mais nisso.
Quando, então, me falam muito de Deus, apenas respondo: qual Deus? Para que essa pergunta encontre resposta, é preciso que sejam apresentados dogmas, doutrinas e histórias fantásticas para formatar o Deus de quem se fala. Não há como se propor a existência de um ser superior desvinculado da dogmática. Só o dogma desenha o perfil de Deus. Fora disso, é conversa perdida.
É só fazer um teste. A título de experiência, tentemos construir um deus, com todos os seus predicados, que não tenha qualquer base doutrinária conhecida para que ele seja sustentado como tal. Quais seriam esses predicados e atributos próprios? Onipotência, onisciência, onipresença, onibenevolência, etc. Onde encontrar os argumentos de sustentação para esses atributos? Na Bíblia cristã, na Torah, no Corão. Voltamos a falar sobre os monoteísmos. Mas os livros não nos interessam agora, já tocamos neles. O Livro foi exposto, discutido. Voltemos à nossa tentativa de construção de Deus sem as Escrituras. O que resta para prosseguirmos? Vamos lá, tentem! Impossível, não? O Deus que conhecemos só pode ser definido através do Livro, que está aí há milênios. E o livro não é muito confiável, longe de ser perfeito. E agora, leitores, fechamos os olhos para o que vimos até agora, ou mudamos a vida?
Não aceito o rótulo de agnóstico. Se eu tiver, porém, que ser enquadrado num rótulo, o de ateu protestante ou ateu católico é a minha preferência, já que essas foram as duas religiões mais predatórias que fizeram a minha existência de alvo. Então, acho que vou ficar com o humanismo secular.
Pelo fato de alguns pensadores defenderem a ideia de que os homens não abandonam, com a ajuda do raciocínio, o que eles não adquiriram pelos meios da razão, não representa uma verdade absoluta. Não adquiri pela razão a fé cega que me prejudicou no passado, foi a cognição desviante. Mas o fato de ter deixado para trás essa mesma fé, devo exclusivamente ao conhecimento humanístico que me fundamentou. O que ocorre, é que abandonei a ilusão religiosa por uma razão cultural. Porque acredito em mim, no intelecto e no poder do conhecimento científico.
Nunca fiquei em “cima do muro”, porém, aceito o princípio da admissibilidade da existência de um ser ou seres superiores, mas como não há nenhuma prova desse deus, não vou perder tempo discutindo abstrações. Por outro lado, quem somos nós para afirmarmos a existência ou a inexistência de um ser superior que possa ter interferido na orquestração do universo? Não estamos situados fora do espaço-tempo para sustentar algo assim e isso não tem nada a ver com a ciência no estágio em que se encontra. Não é uma visão agnóstica, é incompetência humana.
Se um ser superior existir de fato, com sentido claro e profundo, quero compreendê-lo, com certeza. Se ele quiser cuidar de mim será ótimo, ficarei muito grato, porque não fiz nenhuma solicitação para vir habitar nessa colônia penal. Mas, em relação ao nosso planeta, a teoria da seleção natural de Darwin é mais do que bastante para sanar qualquer dúvida, pois anula cientificamente o casal do Éden e, como consequência, o Livro que inventaram para perpetuar o judeocristianismo através dos séculos. Fica admissível filosoficamente, então, o questionamento do deus da religião.
Quando se fala em Charles Darwin no meio religioso, as pessoas se calam. Por quê? Ah... Porque é um assunto pesado demais para aqueles que gostam de historinhas como a da Fada do dente e pretendem prosseguir com a vida de quimeras! Sam Harris[69] se refere ao assunto sem rodeios: “Os cristãos que duvidam da verdade da evolução costumam dizer coisas como ‘a evolução é apenas uma teoria, não um fato’. Tal afirmação revela uma séria falta de compreensão sobre a maneira como o termo ‘teoria’ é usado no discurso científico. Na ciência, os fatos devem ser explicados com referência a outros fatos. Esses modelos explicativos mais amplos são ‘teorias’. As teorias fazem previsões e podem, em princípio, ser testadas. A expressão ‘teoria da evolução’ não sugere, de maneira nenhuma, que a evolução não seja um fato. Pode-se falar na ‘teoria da origem microbiana das doenças’ ou na ‘teoria da gravidade’ sem lançar dúvidas sobre a doença ou a gravidade como fatos da natureza... Também vale notar que é possível obter um doutorado em qualquer ramo da ciência com a única finalidade de fazer um uso cínico da linguagem científica, no esforço de racionalizar as gritantes deficiências da Bíblia. Parece que um punhado de cristãos já fez isso; alguns até conseguiram diplomas de universidades de prestígio. Sem dúvida, outros seguirão seus passos. Embora essas pessoas sejam, tecnicamente, ‘cientistas’, não estão se portando como tal. Elas simplesmente não estão empenhadas em uma pesquisa honesta sobre a natureza do universo. E as suas afirmações acerca de Deus e das falhas do darwinismo não significam, em absoluto, que haja uma polêmica científica legítima acerca da evolução. Em 2005 foi realizada uma pesquisa em 34 países, que mediu a porcentagem de adultos que aceitam a evolução. Os Estados Unidos ficaram na posição número 33, logo acima da Turquia. Enquanto isso, os estudantes secundaristas nos Estados Unidos se classificam abaixo dos estudantes de todos os países europeus e asiáticos em testes de compreensão de matemática e ciências. Esses dados são inequívocos: estamos construindo uma civilização da ignorância... Eis aqui o que sabemos. Sabemos que o universo é muito mais antigo do que a Bíblia sugere. Sabemos que todos os organismos complexos que há na Terra, inclusive nós mesmos, evoluíram a partir de organismos mais antigos ao longo de bilhões de anos. As provas são absolutamente esmagadoras. Não existe nenhuma dúvida de que a diversidade da vida que vemos ao nosso redor é a expressão de um código genético escrito na molécula do DNA, que o DNA passa por mutações aleatórias, e que algumas mutações aumentam as chances de um organismo sobreviver e se reproduzir num dado ambiente. Esse processo de mutação e seleção natural permitiu que populações isoladas de indivíduos pudessem se reproduzir e, ao longo de vastas extensões de tempo, formassem novas espécies. Não há dúvida alguma de que os seres humanos evoluíram desta maneira a partir de ancestrais não humanos. Sabemos com certeza, a partir de evidências genéticas, que compartilhamos um ancestral comum com os símios e os macacos. E mais: esse ancestral, por sua vez, tinha um ancestral comum com os morcegos e os lêmures voadores. Existe uma árvore da vida extremamente ramificada, cuja forma e caráter básicos são hoje muito bem compreendidos. Assim, não há nenhuma razão para acreditar que cada espécie foi criada em sua forma atual. De que modo começou o processo da evolução continua sendo um mistério, mas isso não indica, de forma alguma, que provavelmente exista alguma divindade à espreita por trás de tudo isso. Qualquer leitura honesta do relato bíblico da criação sugere que Deus criou todos os animais e plantas tais como nós os vemos agora. Não há dúvida alguma de que a Bíblia está errada acerca disso”. A humanidade ainda não percebeu a importância de Charle Robert Darwin, ainda falta um tempo para isto. A história verdadeiramente se divide em antes e depois de Darwin.
De uma coisa tenho certeza: o mal existe de uma forma mais evidente que o bem. Qualquer um vê. O mal é sempre barulhento, enquanto o bem é silencioso e mais fraco. Seja lá o que se chame de bem, é o esforço individual ou coletivo para se atingir um ideal, um pensamento que nos deixa dúvidas. Na contramão, qualquer nome que se dê ao mal, Satanás, Asmodeus, Astaroth, Diabo e família, ou mesmo Mal pura e simplesmente, é o que ocorre de jeito ininterrupto na vida dos homens. Ou, quem sabe, um ser que poderia desempenhar o papel de Deus, se intitulasse como tal diante dos homens, mas que tivesse também a função de praticar o mal? Por causa dessa trevosa ininterrupção, as religiões foram criadas, pois o Bem precisa do Mal para existir... Mas os do clero não resolveram o problema do mal, pelo contrário, ainda nos dizem, coitados, que a culpa não é da religião – que foi o pecado original! Nossos pais das origens nos deram esse presente.
Como Christopher Hitchens mencionou as suas convicções passadas, às vezes também sinto saudade das minhas antigas convicções religiosas, mas entenda-se bem: saudade de algo leve, esperançoso, festivo, com segurança, que dava impressão de alguém conduzindo nossos passos a cada instante... Mas era só impressão. Quem não tem saudade da época das fantasias? Que pena, ao avançarmos no conhecimento, caímos no mundo real. Mas é a escolha certa para enfrentar a vida com consciência.
Hoje, percebo o tempo perdido, tento resgatá-lo, mas em vão. Minha experiência religiosa do passado, entretanto, deve ter um aspecto necessário qualquer, pois cada um busca preencher vazios de acordo com a época em que vive e as dúvidas que enfrenta. Vejo que os jovens, na maioria, não têm problemas com dúvidas religiosas que os confunda. Apenas não estão interessados nisso. Outros há que questionam em tempo integral, frequentam igrejas, cumprem rituais e são filiados a instituições religiosas diversas. É de cada um. Quanto a mim, houve muito empenho para encontrar as respostas esperadas. O mais difícil foi reunir a coragem e a honestidade necessárias para dar o primeiro passo na direção das minhas convicções. Valeu a pena, pois sou feliz.
Só passando pelo deserto é que conhecemos a sede e os espinhos. Admito, portanto, a importância de todas as etapas da estrada. Por essa razão, tenho condições para falar delas de dentro para fora. Acho que a igualdade de ações e propósitos entre os homens foi minha descoberta mais importante. Todos querem a mesma coisa. Somos a mesma coisa: queremos servir a Deus e ficar ricos. Somos uma coisa em evolução biológica e cultural, que retrocede ao estado natural frequentemente. A barbárie está em nossos bolsos para uso contínuo e não abrimos mão.
Como Hitchens, lamento não estar mais na ilha da fantasia. Mas escolho a visão de hoje, com toda a carga de realidade que ela traz. Muitos permanecem na ilha da fantasia, morrem nela, mas quando se descobre com convicção a realidade do mundo, não dá para desfrutar mais de uma felicidade convencional, pois é apenas um pensamento. Hoje, tenho a felicidade do ser-saber – a ontologia dos desigrejados. Que vergonha eu sentia dos tempos em que vivi com os igrejados... Antes, era o caminho fácil. O de agora, percorre-se a cada dia, é aleatório, único e sem enfeite. É muito melhor.
O que se há de fazer? Simplesmente, andar pelo caminho, que pode representar o devir da própria felicidade. Nesse roteiro, a escolha tem que ser feita: sentar para esperar o fim, resignados – amém – ou buscar significados aqui, não no além. Construir ideais, objetivos, razões. Não tolas, como o consumismo de per si, mas o consumo dos instantes, fazendo-os preciosos. Daí, significantes. Achar padrões para o mundo em que vivemos, conferindo-lhes significados elevados, porém para a vida na Terra, não nas estrelas. O amor não faz mal a ninguém e não precisa ser transcendente, deve ser o elo principal entre todos os seres daqui. Falar em amor celestial, enquanto as “verdades” não nos convencem? Só pelo fato de estar escrito na Bíblia que as coisas iriam piorar no fim dos tempos? Ora, voltamos às hipóteses? Confiar na Bíblia depois do método histórico-crítico, eis a questão. Fé e razão serão sempre inconciliáveis, apesar de alguns verem o contrário. Acho que o amor com dimensão profunda, por aqui, pode ter um resultado melhor do que fantasmas irresponsáveis pulando amarelinha pelos planetas, universo afora, ao invés de cuidar de nós.
Antes de perder a fé no deus político, que promete, não cumpre e nunca nos responde, perguntei a uma pessoa amiga que renunciara ao deus da religião, a quem ela recorria nos momentos de apuro. Com quem ela contava nos momentos de desespero, ao que me respondeu: “Eu analisei a vida e só conto comigo! Vou contar com quem, meu amigo?”. Depois experimentei o lado prático disto.
Por falar em analisar, foi o que aprendi a fazer muito bem. No caso dos religiosos, parei por anos na análise de minúcias. Os mais fervorosos, por patético que pareça, são os que se preocupam em exibir a “perfeição” alcançada e os que menos valem algo. São indivíduos imprevisíveis, embora agindo dentro de previsibilidade aparente aos olhos da sociedade, abrigam os sentimentos mais multifacetados e contraditórios possíveis. Não são dignos de confiança, por estarem próximos demais do Criador.
O sectário de carteirinha é perigoso, covarde e calculista. Ele precisa mostrar que, sem o dogma, todos seremos mais e mais reféns da perdição. Cobram santidade dos fiéis e, psicanalisados, não podem ocultar os desvios sexuais dignos dos livros negros da medicina do século dezoito. Ora, cansei do teatro comportamental, não suporto mais religiosos que querem nos ensinar a viver.
A Igreja alimenta a crise porque a crise sempre atrai as pessoas para a fé e, nesse processo, a religião nunca se desgasta pelo seu fracasso oculto, pois a culpa é sempre nossa. A lógica da exclusão funciona desse jeito. A Igreja delega aos fiéis cargos e atributos para encorpar a vaidade nas suas vítimas, que se sentem impelidas a um esforço sobre-humano na ostentação vil de uma nova personalidade. Foram renascidos e transformados por Deus? Não. Foram deformados pela máquina de moer carne da Igreja, que lhes promoveu a quasímodos espirituais. Por essa razão, Nietzsche definiu a fé cristã como um grande mal-entendido.
Antes de um julgamento por parte dos leitores e uma possível condenação aos horrores da eternidade por expor meus graves pontos de vista, peço que pensem sobre o que significa a palavra honestidade. Fácil é julgar, aliás, nunca se julgou tanto o ser humano, pois os pensamentos divergem entre os homens como em nenhuma outra época da civilização. Talvez devido à difusão diversificada do conhecimento humanístico. Em relação à palavra honestidade, é o requisito básico para a evolução do pensamento e, então, optei por questionar a religião em nome dessa honestidade. O que você faria no meu lugar? Quando se chega ao entendimento sobre a natureza da religião e a natureza humana, como prosseguir na arte cênica? Como representar mais um ato? Temos que atender à nossa consciência, mesmo sob a pena de sofrer acusações e julgamento dos detratores!
De que adianta ser um religioso hipócrita? Tenho certeza de que, se houvesse um julgamento divino, a honestidade como divisa do réu definiria a sua absolvição. Por isso, a proposta de Pascal já não me convence. Procurei, por todas as formas, conciliar minha visão de hoje com o deus da religião, mas foi um fracasso, pois as naturezas são opostas. Incoadunável. Preocupei-me em ficar sem religião, sem os irmãos e a proteção que o meio promete dar. Mas o problema é que escolhi ser honesto comigo mesmo e com todos em relação à minha posição espiritual.
Com minúcias, analisei as reações da sociedade sobre o homem que pensa cientificamente. Percebi a atitude de medo da massa ignorante com aqueles que têm certeza intelectual. A massa ignara se sente ameaçada, arrepia-se e discrimina cegamente qualquer um que questione a religião. Profere julgamentos insidiosos, suspeitas padronizadas, acusação de assassinato de Deus e não é preciso mais. Mas isto, ainda bem, tem origem no populacho fanático. É próprio de uma classe intelectual que não mede as palavras nem o julgamento precipitado. Não pensa e precisa se pronunciar a todo custo, ainda que de maneira torpe.
Os desse populacho não raciocinam e sentenciam aqueles que não pertencem ao senso comum, “o homem sem Deus é como um verme que rasteja”, vociferam. Não têm noção do que dizem, mas precisam fazê-lo. Emitem qualquer juízo, desde que haja respaldo e repercussão entre os “fofoqueiros santos” dos meios religiosos, não importa quais sejam. Precisam acusar o que não entendem. Precisam se fortalecer na sua fraqueza das difamações e conclusões Blasonar qualquer coisa, pois não têm opinião própria, mas a do grupo social de pertencimento. Se o mundo dependesse deles, ainda estaria nas palafitas das origens humanas. Acusam tudo que não conhecem em busca de apoio, por serem fracos, exatamente porque gostariam de ter coragem de abraçar o pensamento livre e o lado feliz da história. Verdadeiros exércitos dentro da caixa, porque não acreditam em si mesmos e não deixam as muletas.
Quanto vale ser honesto? Vale o preço da liberdade. Por todas as razões aqui expostas, tive coragem de duvidar, expor-me às críticas e lutar pelo meu ponto de vista. Para os antigos, até os do século vinte e um, isso significa perder a salvação. Como posso crer no deus das ameaças, que Michelangelo pintou na Sistina, no deus confuso do tio Gepeto? Para algumas pessoas talvez seja bom insistir numa fé cega em coisas do além... Até pode ser que se sintam felizes, mas deixei a embromação de lado. O compromisso que tenho é comigo mesmo e sem discussões, ponto final.
Mostrei a invenção da Bíblia nesta obra e, indubitavelmente, são comentários nada convencionais, que abordam uma triste ilusão humana. Quero, então, ser direto. Não vou encerrar estas páginas com divagações demagógicas, como fazem alguns escritores céticos, dando conselhos para aproveitarmos os dias nesse mundo. Não vou encerrar este livro pregando simulações de ajuda ao próximo e defender os valores morais como forma de não sofrer acusações do tipo: “se um indivíduo é cético significa que é mau ou não tem caráter”. Não preciso escrever assim, pois sempre tive certeza de que a religião não faz o homem. Ela é que precisa se associar desesperadamente aos homens de valor e usá-los, sem que percebam, para prosseguir com a alienação das massas. Olho hoje para o significado da vida, que é a própria vida.
A verdade deve ser o centro da nossa busca e a fórmula para encontrá-la é examinar tudo que esteja por trás das coisas que se apresentam como verdadeiras. Subam em um banquinho para olhar por cima do muro. Quando a política, a intenção de lucro financeiro e o interesse em qualquer tipo de poder invadir aquilo que respeitamos, é melhor que se desconfie seriamente. Que se desconfie também dos gestos de amor, promessas e palavras com aparência de muito amor. Cuidado com os que falam que as coisas são sagradas e suspeite, acima de tudo, daquele tipo vaidoso que se intitula “homem de Deus”, pois esse pode ser um réptil que desliza no jardim do nosso Éden. Ninguém é homem de Deus.
Bem, por aqui termino, mas com um conselho oportuno para melhorar a prática das leituras no dia a dia. Sabem como descobri todas essas coisas sobre o Livro? Minha visão não estava muito boa, então consultei um oftalmologista, que me receitou um par de óculos. Era estrabismo cultural e, por isso, não podia ler a Bíblia com clareza... Brincadeiras à parte, não me sentia mais do que um míope intelectual no passado, pois não aprendera a pensar. Agora entendo como as coisas funcionam e como foi inventada a religião do Livro, que não me engana mais. Passei a usar os pés, e não os joelhos para caminhar.
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[1] O mais famoso ilustrador histórico brasileiro e meu mestre de desenho (1927-2007).
[2] “Creio porque é absurdo” – dictum de Tertuliano e depois postulado por Martinho Lutero.
[3] Salvo conduto – a própria salvação – a convicção de ser eleito para a eternidade com Deus.
[4] Quando me refiro à palavra crente, quero acentuar que trato de um sentido abrangente e não de um devoto do cristianismo apenas.
[5] “Conto o que me contaram” – processo popular de tentativa de isenção de um boato qualquer.
[6] Acabou-se a história; terminou o assunto!
[7] Zoólogo e filósofo famoso pelo seu ceticismo, nascido em Nairóbi, Quênia, em 1941.
[8] Por que existe algo e não apenas o nada?
[9] Era uma vez, há muito tempo...
[10] Uma espécie de pseudointelectuais que se propõe ao estudo de fábulas que salvam almas.
[11] Um dos mais destacados arqueólogos do século vinte.
[12] Professor de História Contemporânea da Universidade de Tel-aviv.
[13] Escritor inglês (1737-1809) – escreveu a obra de filosofia deísta, Age of reason.
[14] Deuteronômio 28:1-6
[15] O supremo bem.
[16] Escrita deturpada e de má carpintaria.
[17] Secretário copista de textos à mão – do latim ab manu.
[18] Palavra alemã que significa “fonte” – abreviado como “Q”.
[19] Do grego “parecer”; parecido – que deu origem ao uso corrente do termo “docetismo”.
[20] Do grego gnosis – “conhecimento”.
[21] Termo grego que representa o Um, o Singular, o Eterno.
[22] Palavra grega que significa Sabedoria.
[23] A palavra grega orthos significa certo / correto. A palavra doxa significa opinião. Portanto, ortodoxo significa a crença certa – a opinião correta.
[24] Do latim “Com este signo vencerás”
[25] Salas de mosteiros destinadas às cópias das Escrituras e iluminuras das mesmas.
[26] Comum – edição comum, popular.
[27] Do latim “à mão” – escrita manual.
[28] Humanista holandês de expressão latina – (1469-1536).
[29] Primeira edição a ser publicada.
[30] Cardeal da Igreja Romana (1437-1517), nascido na Espanha.
[31] Robert Estienne – tipógrafo francês (1503-1559).
[32] Tipógrafo real
[33] Texto do povo – recebido e aprovado pelo povo.
[34] Textum ergo habes nunc ab omnibus receptum, in quo nihil immutatum aut corruptum damus.
[35] Teólogo inglês (1638-1726).
[36] Grupo de 43 teólogos protestantes que formaram um documento na Escola de Leyden, Holanda, em 1610.
[37] “Somente as Escrituras” – de forma literal, poderiam fornecer as bases da fé cristã.
[38] Padre, exegeta, filósofo e historiador francês (1638-1712).
[39] Teólogo inglês fundador da filologia histórica (1645-1742).
[40] Ministro luterano-pietista alemão (1687-1752).
[41] Teólogo protestante alemão (1693-1754).
[42] Doutrina antitrinitária que afirma ser Deus de natureza única, sendo Jesus uma pessoa independente. Sustenta que a Bíblia é a única autoridade, mas tem que ser interpretada pela razão; rejeita a doutrina do pecado original; os mistérios; a unidade, eternidade, onipotência, justiça e sabedoria de Deus.
[43] Pesquisador alemão (1793-1851).
[44] Erudito e pesquisador alemão (1815-1874), nome que significa louva-a-deus.
[45] O Antigo Testamento em grego.
[46] Clérigo e teólogo inglês (1825-1901).
[47] Teólogo e editor irlandês (1828-1892).
[48] O Novo Testamento no original grego.
[49] “Escrito sob um nome falso”.
[50] “Livro cuja autoria é falsa”.
[51] Professor alemão de filosofia e teologia (1768-1834).
[52] Citação de Terêncio, “Os livros têm os seus destinos, os seus fadários!”.
[53] Citação de Plauto, repetida por Hobbes – “O homem é o lobo do homem”.
[54] A figura do religioso.
[55] Processo publicitário de fixação de imagem, de marca ou logotipo.
[56] “A sagrada fome do ouro”.
[57] Escondidos.
[58] Lagarto peçonhento da Indonésia que morde as vítimas, para depois devorá-las lentamente.
[59] Teofania é a aparição da divindade.
[60] Um guerreiro famoso do todo-poderoso de Israel e herói da fé em tempo integral.
[61] Período que sucederia a volta de Cristo, dando início às dores apocalípticas.
[62] Filósofo e enciclopedista franco-alemão, 1723-1789.
[63] Homem jogador.
[64] A velha escola de desenho e pintura.
[65] Governantes da cleptocracia (sistema de governo dos ladrões).
[66] Expressão grega que significa pornográfica/pornografia.
[67] Expressão latina que significa “Somente as Escrituras”.
[68] Jornalista e escritor inglês (1949-2011), que compôs com Richard Dawkins, Daniel Dennett, e Sam Harris, “os quatro cavaleiros do Apocalipse”, criadores do ceticismo pós-moderno.
[69] Filósofo e doutor em neurociência pela universidade de Stanford.